sábado, 26 de junho de 2021

A adaptação ao medo

 O ser humano, nas devidas proporções, sempre se adapta às condições de seu ambiente.

Isso vale também para as sensações, como o medo. Quando sentimos medo, uma descarga de adrenalina é feita em nosso sangue, ativando a  reação de luta/fuga. Imagine ser ameaçado por algum animal perigoso, como um cão feroz. Seu cérebro ativa a descarga de adrenalina e você corre ou enfrenta o cão. 

Porém, à medida que enfrentamos perigos e conforme a adrenalina é jogada no sangue repetidas vezes, o corpo vai se acostumando com isso e com o tempo são necessários estímulos cada vez maiores para provocar a mesma reação. Isso também é um mecanismo útil para a sobrevivência e ajuda a explicar porque um caçador mais experiente não reagiria da mesma maneira que um jovem em início de "carreira" diante de, digamos, um tigre dente de sabre. O caçador experiente não subestimaria o tigre, mas também não sentiria o mesmo medo que um jovem caçador inexperiente sentiria ao se deparar com este animal pela primeira vez.

Essa adaptação do corpo humano à adrenalina ajuda a explicar bastante coisa na sociedade e na cultura, inclusive coisas que acontecem na literatura.

Basta observar como eram as histórias de terror mais antigas. 

"O Castelo de Otranto", lançado em 1764 e considerado o primeiro romance gótico, não seria considerado assustador hoje em dia pela grande maioria das pessoas. Provavelmente o foi na época. Também foi considerada uma obra polêmica.

As principais histórias de terror que definiram o gênero gótico foram escritas no século XVIII (Frankenstein, Drácula, O Médico e o Monstro, e as obras de Edgar Allan Poe são os principais exemplos) e foram muito bem sucedidas, tendo sobrevivido ao teste do tempo, visto que influenciam toda a produção de terror literária, cinematográfica e de jogos até hoje. Porém, tais obras por si só não seriam consideradas assustadoras hoje em dia.

Porque isso acontece?

Quando autores começaram a escrever histórias de terror, cada leitor recebia uma pequena descarga de adrenalina ao ler as histórias. Com o passar do tempo, histórias de terror "do mesmo nível" já não provocavam o mesmo efeito e deixavam de ser interessantes sob este ponto de vista (embora ainda pudessem ser interessantes de outras maneiras, como pela originalidade, profundidade dos personagens, etc). 

Além disso, as próprias circunstâncias da vida foram mudando cada vez mais rapidamente, principalmente a partir da revolução industrial. A vida vem se tornando cada vez mais acelerada e mais instável, e isso também provoca descargas de adrenalina, contribuindo para tornar as pessoas menos sensíveis, de uma maneira geral. 

E, sempre é possível dizer, a literatura fantástica sempre serviu como uma forma de escapismo da vida quotidiana (não somente da monotonia da rotina, mas também das incertezas e problemas da vida real). Com a vida mais instável, mais as pessoas recorrem ao escapismo (isso também explica em parte a explosão do uso de drogas nas últimas décadas) e com isso mais literatura fantástica é demandada e lida, o que contribui para dessensibilizar ainda mais as pessoas, reforçando o ciclo.

Isto tudo ajuda a explicar, dentre outras coisas, o surgimento e o desenvolvimento das montanhas-russas e outras atrações similares em parques de diversões, do circo, dos freak shows do século XIX, etc. Trata-se da busca por emoções fortes e adrenalina como forma de escapar da rotina e das opressões da vida mundana. 

Com isso, ao procurar o escapismo e o "prazer de sentir medo" através da literatura de terror, as pessoas foram sentindo a necessidade de obras cada vez mais assustadoras. Obviamente os autores e o mercado editorial perceberam isso (mesmo a nível inconsciente) e assim, com o passar dos anos, as histórias de terror se tornaram cada vez mais detalhadas e em muitos casos cada vez mais extremas. 

Então, por exemplo, livros como Drácula ou Frankenstein não dão medo nos dias de hoje (chega até mesmo a ser difícil acreditar se estas leituras algum dia provocaram medo em alguém), pois já lemos (e, infelizmente, vimos) terrores que vão além do que está escrito nestes livros.

Isto é ainda mais fácil de se perceber no cinema e nos quadrinhos. Por exemplo, filmes de ação antigamente limitavam a violência a trocas de tiros ou lutas coreografadas entre o herói e o vilão. Com o passar do tempo,  a violência nos filmes aumentou consideravelmente, incluindo cenas com demonstrações de crueldade e sadismo que eram impensáveis de serem exibidas no cinema alguns anos antes (incluíram cenas de tortura, por exemplo). Nos quadrinhos, basta comparar o estilo dos anos 60-70 com os atuais. Há muito mais violência, cada vez mais extrema. Por exemplo, as cenas de luta nos quadrinhos daquela época eram bem mais estáticas e não eram muito impactantes. Acho que nem em quadrinhos "de terror" havia muita violência. Hoje em dia, não é difícil encontrar cenas chocantes de desmembramento em quadrinhos de super-heróis, coisa que imagino que fosse impensável nos anos 60. 

No terror, nota-se que os "monstros clássicos" (vampiros, lobisomens, etc) foram relegados para o reino da Dark Fantasy, e não costumam mais ser antagonistas de histórias de terror, ou ao menos não costumam mais ser os antagonistas principais. A mesma coisa aconteceu com os zumbis, que há pouco tempo "estavam na moda" mas também já foram relegados para a Dark Fantasy. Hoje em dia o que está em voga por enquanto são espíritos malignos, demônios que possuem pessoas, serial killers, terror psicológico e por aí vai, fora os clichês mais comuns das Creepy Pastas (que de certa forma também envolvem espíritos malignos, serial killers e, principalmente, muito terror psicológico). 

(Aliás, as Creepy Pastas merecem um post à parte, pois é possível detectar alguns fatores bastante característicos inerentes a este subgênero literário, muito embora ele já tenha decaído, na minha opinião.)

Uma possível explicação para isso seria que vampiros e lobisomens são temas que já foram extensamente explorados e com isso nos acostumamos com eles. Outra explicação é que, bem ou mal, espíritos e demônios são entidades muito menos conhecidas e muito mais elásticas em termos de forma e possibilidades, o que ajuda a ativar o nosso medo do desconhecido, que nos acompanha a vida inteira. 

Quanto a serial killers em histórias de terror, eles dão medo porque representam situações que podem ocorrer na vida real, ou seja, estão mais próximos de nossa realidade. Muitas das histórias que foram escritas envolvendo serial killers são adaptações da realidade, e é esta proximidade que dá medo.

Um dia até mesmo estas coisas se tornarão lugar-comum (já está acontecendo) e outros assuntos precisarão ser explorados (ou assuntos antigos precisarão ser repaginados) na literatura de terror. 

Eu já vejo despontarem contos centrados em assuntos atuais, como o mau uso da inteligência artificial, as desventuras de pessoas desesperadas tentando ganhar dinheiro no mundo da "gig economy",  e fora todas as coisas estranhas que têm acontecido na nossa bizarra era moderna...

O meu medo é... o que virá a seguir?


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