segunda-feira, 31 de maio de 2021

Problemas do RPG - Advogados de Regras

 Saudações, taverneiros, mestres e matadores de goblins!


Retomando minha série (infinita) sobre problemas dos RPG, hoje vou falar sobre aquele tipo de jogador (e mestre) que é tão ruim quanto aqueles viciados em fazer combos: os advogados de regras.


Vou relatar um causo que aconteceu comigo, quando estava mestrando uma aventura de (advinha?) Ravenloft: um dos jogadores estava interpretando um elfo ladino nível 2 (não lembro o nome do personagem, mas vamos chamá-lo aqui de Dido, o Elfo... entendedores entenderão), e na cena em questão estavam enfrentando um Wolfwere dentro de uma cabana abandonada no meio da floresta. A cabana devia ter uns 10 metros quadrados no máximo e não tinha cômodos. Dentro dela havia apenas uma mesa com algumas cadeiras, um fogão a lenha e uma cama. Pois bem, quando chegou a vez dele falar o que seu personagem iria fazer, ele descreveu o seguinte:

"Dido vai atirar uma flecha no monstro, correr, fazer um rolamento no chão e se esconder nas sombras no canto da cabana" então ele rolou o dado e viu que conseguiu fazer tudo o que queria, e colocou sua miniatura no canto do mapa (eu gosto de jogar com miniaturas e grids ou mapas, mas só para ajudar a mentalizar a cena, sem regras -- lembrem-se disso, pois vai ser importante mais para a frente)

Estávamos usando as regras de D&D 5e (pois é, fazer o quê...) então cada personagem tinha direito a muitas ações, e acho que o PJ em questão conseguia fazer umas 4 coisas em cada turno, podendo ser, por exemplo, 2 ataques e 2 ações diversas. 

Parei um pouco para pensar e vi que aquilo não fazia sentido. Eu falei: 

"Mas não tem como o elfo Dido se esconder nas sombras nessa situação! Primeiro, porque não tem nada para você se esconder, a cabana é quase vazia! Segundo, porque o Wolfwere está te vendo, ele vai ver pra onde você foi, não vai adiantar!"

Ao que ele respondeu:

"Ah, mas minha chance de sucesso é de XX%, e eu consegui tirar isso no dado. Além disso, meu personagem tem Stealth porque eu escolhi o arquétipo XYZABDCD, o que garante um bônus de YY% nas jogadas de oportunidade, e além disso minha destreza é 15, o que me dá um bônus de mais ZZ% e blá blá blá..."

Para não perder o jogador (e é difícil arranjar jogadores, pelo menos para mim) acabei aceitando e deixei o elfo se esconder nas sombras do canto da choupana logo depois de atirar uma flecha em um wolfwere que inexplicavelmente não o viu, embora tenha sentidos aguçados e seja uma criatura da noite.

Logo depois, quando mexi a miniatura do wolfwere para encenar ele indo atacar um outro jogador, aquele que estava interpretando o elfo Dido do nada falou: "você passou a 3 tiles de distância do meu personagem, que estava escondido nas sombras! Isso dá 1 metro e meio, o que me permite fazer um ataque de oportunidade! Atirei uma faca de arremesso!"  

Ao que eu respondi "mas eu não estou considerando os tiles, isso aqui é só pra representar a cena!"

Mas para não ficar chato e não perder a esportiva, fingi que aceitei, mas quando rolei o dado, fingi que não houve dano no wolfwere, e ainda forcei um 20 "natural" feito pelo monstro logo depois, e acabei matando Dido, o elfo (na verdade, ele só ficou inconsciente e tiveram que gastar umas magias para ele reviver algum tempo depois)

Jogando com outro grupo a aventura Feast of Goblyns, também de Ravenloft, havia um jogador com um personagem que era um mago que vivia roubando artefatos mágicos. Um background interessante. Toda vez que eu dizia que acontecia determinada situação e determinava que um teste do atributo "X" deveria ser realizado, ele vinha e falava "Ah, mas nesta situação era melhor o atributo "Y" porque pipipi popopo" e sempre interrompíamos o jogo para decidir qual era o melhor atributo. 

Em outra ocasião ele conjurou a magia "Pequena Cabana de Leomund". 

Segundo a descrição da magia "Todas as outras criaturas e objetos são bloqueados ao tentarem atravessa-lo. Magias e outros efeitos mágicos não podem se estender através do domo ou serem conjurados através dele.

Para mim simplesmente não faz sentido que um ser mais poderoso que o próprio mago que conjurou a cabana seja incapaz de atravessar a barreira ou destruí-la. 

Mas enfim, ele conjurou a cabana para que o grupo acampasse dentro dela e não fosse atacado à noite (boa estratégia). 

Porém, para fins da trama prosseguir, precisei fazer com que alguma coisa atravessasse a barreira - inventei que uma criatura ficou do lado de fora olhando fixamente para quem estava dentro e com isso conseguiu provocar pesadelos perturbadores (os pesadelos dariam uma pista do que fazer a seguir) mas o jogador reclamou, dizendo que ""Ah, mas não pode! NADA atravessa essa barreira!". Acabei resolvendo dizendo que "a coisa que provocou os pesadelos usa uma magia de uma natureza muito diferente, então ela conseguiu"

Eu sou totalmente a favor de que algumas regras sejam quebradas para fins de avançar a trama e/ou para que a trama faça mais sentido, senão fica tudo engessado. Este foi um desses casos. 

O errado é quebrar as regras só para os jogadores perderem.

Em resumo: muito jogador prefere "rolar dadinho" e "consultar tabelinha" do que realmente imaginar algo que faça sentido, e faz questão que cada regrinha seja seguida à risca, mesmo que a situação não tenha nada a ver. 

Sim, eu sei que isso é um jogo de fantasia, mas mesmo com toda a imaginação do mundo, algumas coisas têm que permanecer fazendo sentido - a gravidade, a passagem do tempo, o calor, o frio, etc. Senão daqui a pouco um gnomo vai conseguir sozinho levantar e arremessar um ogro só porque tirou 20 no dado...(e se bobear isso já aconteceu...)

=================================================

Se você estiver interessado em aventuras com ambientação gótica, visite minha loja no DrivethruRPG. Devagar e sempre irei publicar mais títulos!

terça-feira, 25 de maio de 2021

O que está acontecendo com as ilustrações de RPG?

Saudações, taverneiros, aventureiros e NPCs!

Antes de mais nada, gosto é de cada um, e o texto a seguir é minha opinião e minhas impressões pessoais sobre a arte que tem sido escolhida para ilustrar os livros de RPG de D&D recentemente...  

Hoje em dia parece que todas as ilustrações de livros de RPG são na verdade ilustrações de campeões de LOL, Team Fortress, etc. e não de heróis de fantasia medieval, numa verdadeira "gamificação" das figuras, que na minha opinião, acabam quebrando um pouco do clima.

Reparem como tudo é bastante exagerado nessa figura.
Fonte: https://dnd.wizards.com/articles/features/fan-site-kit

Analisem a figura acima. Tudo nela é exagerado e há uma certa poluição visual em cada personagem quando observado individualmente. É como se cada personagem fosse sombrio, "frio e calculista", etc. Todas as "pontas" (das armas, roupas, etc.) são afiadas, todas as cores são escuras, todas as armas que os personagens usam tem um jeito de "arma lendária destruidora de demônios", nenhuma parece normal. Duvido que qualquer monstro sobreviva a um encontro com um só personagem destes que estão representados. Além disso, parece um cartaz de filme de super-herói, e não uma cena que esteja realmente acontecendo. Não tem autenticidade aí. É puro marketing.

Sinceramente, que Halfling mal desenhada...


Essa "gnoma" parece o Smeágol antes de perder o cabelo

Outro detalhe é que nas ilustrações atuais alguns personagens são feitos
 com feições desenhadas em um nível que beira o cômico, quase lembrando animações em CGI em alguns aspectos, como as ilustrações acima.

Agora notem como as ilustrações abaixo tem um ar de "artificialidade", ou seja, não há verossimilhança - nada parece natural a respeito delas, é como se não tivessem vida:

Eu não sei explicar bem, mas nada faz sentido para mim nessa imagem. Embora seja um jogo de fantasia e imaginação, estas imagens parecem "artificiais" - se aquele mundo de fantasia existisse, imagino que não seria do jeito que está sendo retratado aqui: por quê uma criatura meio-dragão precisaria de armadura? Por quê o anão usaria uma armadura que o torna incapaz de passar pela maioria das portas? Como o anão se abaixa para pegar coisas que estejam no chão? Como que a armadura do humano parece ser feita de metal e de pano ao mesmo tempo? Os únicos que parecem mais verossímeis são o hobbit halfling, o meio-elfo, o elfo, e o Shrek meio-orc.

Vejam só esta outra imagem, capa alternativa do mais recente lançamento de Ravenloft (Van Richten's Guide to Ravenloft):


Tudo está estilizado demais, a meu ver só para fins de apelo visual. Reparem nas roupas exageradas da "mulher-pirata" da capa: provavelmente é resistente a magia, afinal uma roupa tão chamativa precisa ter alguma coisa de especial. A espada que ela está usando, com a guarda tão trabalhada, com certeza tem o poder de destruir monstros com um só golpe, porque deve ter custado bem caro. O zumbi à esquerda parece que está fumando. O Conde Strahd quase se confunde com o background (por causa da escolha de cores), e sua espada com "meia guarda" para a mão não faz muito sentido prático. Praticamente não há profundidade na cena, nenhuma das cores parece natural e a lamparina na mão da pirata parece que só projeta luz em um pequeno círculo ao redor dela própria. 
Sinceramente, o melhor desenho nesta capa é o lobisomem à direita, e mesmo assim ele parece um rascunho que pintaram de cinza.

Comparem com uma imagem "semelhante", também de Ravenloft, só que da época de AD&D 2e (capa do kit Forbidden Lore):


Eu não sei quanto a vocês, mas a 2ª imagem me parece muito mais bem feita e melhor desenhada, em todos os aspectos: cores, luz, sombras, as roupas da personagem, o cenário, profundidade, e por aí vai. Essa imagem é realista e de uma maneira sem exageros. Tem realmente uma cena aí, tem alguma coisa acontecendo, não é somente uma figura que parece legal. 

A imagem anterior é chata e sem vida. Parece um flyer de propaganda de uma festa universitária, e não uma capa de livro. Parece que foi feita só para fins de marketing. Não é autêntica. Parece uma selfie com filtros de um aplicativo de fotos.

Ainda falando de Ravenloft, na minha opinião o design do Conde Strahd para a 5ª edição de D&D é, digamos, bastante sem graça. 

Quiseram "embelezar" o vampiro, deixá-lo com aparência mais jovem, mas isso acabou descaracterizando o vilão. Ele agora parece mais um anti-herói do que um verdadeiro vilão. Comparem as figuras abaixo (a primeira com o novo design, usado desde o lançamento de Curse of Strahd, e as outras duas dos anos 80 e 90)

A clássica inimizade Strahd vs Azalin - para ser justo, o design do Azalin melhorou bastante em relação ao da Black Box

O design original deixava claro que Strahd é um vilão. Além disso, notem como o cenário é rico. notem o jogo de luz e sombras, os pequenos detalhes... Isso foi feito sem os recursos que existem hoje em dia, e ficou melhor!

Na minha opinião, a melhor representação de Strahd é essa, do Domains of Dread.

Creio que a mudança de design do vampiro também tenha sido uma tentativa da WotC de afastar a imagem de seu personagem da imagem do ator Bela Lugositalvez por questões de direitos de imagem. Será que descendentes do ator estavam exigindo receber uma parte dos royalties relacionados ao personagem Strahd von Zarovich? Não me parece uma possibilidade remota, tendo em vista o histórico de seu filho, também chamado Bela Lugosi, advogado e ativista dos direitos das celebridades. Na minha opinião, isso deve ter tido algum peso nessa decisão.

Na edição 3.5, os traços (pelo menos os de Ravenloft) ficaram em um estilo próximo do "mangá" (mas sem o exagero que se vê nos livros do cenário "Tormenta", por exemplo) e com armas e armaduras mais realistas do que o estilo atual. É agradável aos olhos e não há muita "poluição visual". Vejam abaixo:

Esta imagem tem exemplos de todas as raças de personagens para Ravenloft 3.5. Uma mudança bizarra em relação ao AD&D 2e foi que os Gnomos passaram a ser caracterizados como "góticos irônicos que gostam de humor negro", enquanto que antes eles eram uma raça baseada na sociedade romana, vestiam togas e tinham nomes em latim. Foi uma mudança drástica de uma edição para a outra, e seria interessante saber o motivo... Não que eu goste de jogar com personagens gnomos.

Agora, falando sobre a arte dos livros na época anterior à 3ª edição: havia artes mal feitas? Sim, claro! Mas no geral, antes os desenhos eram mais sóbrios e tinham aquele aspecto artesanal que dava um charme de "livro antigo", fazendo destes livros quase atemporais. Não sei explicar bem, mas elas têm um apelo quase nostálgico (talvez por eu ter jogado AD&D quando criança) e há um quê de realismo nas cenas desenhadas: as armaduras e armas faziam sentido, e a maneira como as coisas estão desenhadas realmente cria uma ilusão de que "esta cena pode ter realmente ter acontecido há muito tempo, em outra era", ou seja, há verossimilhança. Talvez a palavra-chave seja essa mesma. Isso explica porque os desenhos daquela época pareciam mais naturais do que os de hoje em dia. Vejam a ilustração abaixo:


Esse estilo mais sóbrio é, na minha opinião, bastante superior ao atual e muito mais "fantástico". Tem vida nesta cena.



Agora, para ser justo: muitas ilustrações de AD&D eram claramente "artesanais", pintadas à mão. Ao mesmo tempo que isso dava um charme, havia algumas que não eram tão boas assim em termos de acabamento (principalmente as que ilustravam algumas das classes de personagem no Livro do Jogador de AD&D 2e - mas ainda assim eram muito mais verossímeis que as que são feitas hoje em dia, não tinham o jeito de "produto 100% comercial" que as de hoje em dia têm), mas o que eu quis analisar com este post não são as ilustrações individualmente, e sim o "estilo" e a "estética" da época

Justamente o estilo e a estética "artesanais" faziam com que as ilustrações do AD&D 2e bem como o dos RPG daquela época em geral fossem simplesmente melhores do que os de hoje em dia, apesar de todos os recursos tecnológicos que os artistas têm à disposição atualmente. 

Não vou ser hipócrita aqui: apesar de tudo o que escrevi, todos os que desenharam as artes que apresentei neste post, mesmo aquelas que classifiquei como sendo ruins, desenham melhor do que eu. Não sou nenhum artista, não sou um mestre do desenho. Mas o fato de desenharem melhor do que eu (e melhor do que a maioria das pessoas) não os isenta de críticas, obviamente. Só é uma pena que eu não possa "ir lá e fazer melhor", porque, se pudesse, eu faria.

Talvez o excesso de ferramentas tenha feito os artistas perderem alguma coisa no caminho, por dependerem menos de seus talentos para criarem belas imagens.   

Tudo tem seu preço.



Se você estiver interessado em aventuras com ambientação gótica, visite minha loja no DrivethruRPG. Devagar e sempre irei publicar mais títulos!

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Duelo: Stephen King vs H.P. Lovecraft

Saudações, aventureiros! 

Hoje trago uma comparação entre dois bardos do século XX que se especializaram em compor trovas de meter medo... O bizarro Howard Philips Lovecraft e o estranho Stephen King.

Na opinião deste bardo que vos escreve, não tem nem discussão. Embora sejam autores com estilos diferentes, Lovecraft ganharia de lavada em um duelo de trovas.

Vou explicar o porquê.

Primeiramente, para contextualizar: eu diria que Lovecraft pode ser considerado um autor gótico (do fim do período da literatura gótica), enquanto que Stephen King é um escritor contemporâneo, cuja "classificação literária" ainda não foi inventada, na minha opinião (quer dizer, alguns o classificam como um "autor pós-moderno", mas na humilde opinião deste bardo, esta é uma "categoria-tampão" usada para qualquer autor contemporâneo que não se encaixe em algo mais específico).

Lovecraft descrevia de maneira magistral os cenários de suas histórias, principalmente no que tange à arquitetura e à paisagem, bem como o terror psicológico pelo qual seus personagens passavam. Ele sabia dar boa profundidade aos personagens mesmo em histórias curtas.  A meu ver, suas histórias são atemporais. Por mais que praticamente todas se passem no início do século XX e algumas no final do século XIX, há uma sensação (pelo menos para mim) de que elas nunca "ficarão velhas", nunca precisarão ser atualizadas. 

As histórias do Stephen King, por outro lado, não são atemporais, de uma maneira geral. Ele tem um estilo de escrita em que, para dar mais profundidade aos personagens e riqueza de detalhes ao cenário, enche a história de referências à cultura pop. Por causa disso, seus livros tendem a ficarem muito presos à época em que foram escritos. Óbvio que há exceções (no momento me lembro principalmente do livro Os Olhos do Dragão, acho que o único dele que se passa na idade média, e do A hora do lobisomem, que é uma história tão curta que praticamente não tem um background), mas no geral os livros dele são assim mesmo.

Claro que isso tem um lado bom, pois não deixa de ser uma forma de registro histórico cultural de uma determinada época que ficará para a posteridade. Mas, por outro lado, isso pode fazer com que eventualmente a história fique, digamos, "incompreensível" em algumas partes com o passar dos anos. Por exemplo, ele já teve que atualizar as referências culturais quando publicou a versão revisada de um dos seus mais importantes trabalhos, The Stand (publicado aqui na Terra de Santa Cruz como "A Dança da Morte"). E quando sua obra-prima It (traduzido como "A Coisa" desde os tempos da saudosa editora Francisco Alves) foi novamente transformada em filme há poucos anos, todas as referências também precisaram ser atualizadas - o livro se passa nos anos 50 quando os personagens são crianças e nos anos 80 quando eles são adultos. Nos filmes novos, colocaram os personagens sendo crianças nos anos 80 e a parte adulta se passando nos anos 2010, pois foi "necessário" atualizar as referências culturais. Espero que o King não sinta a necessidade de  atualizar mais este livro... muito embora eu nem considere que It seja um livro tão carregado assim de referências.

Um dos maiores exemplos deste problema de referenciar cultura pop é aquele que S.K. considera como sua "obra-prima": a série da Torre Negra. Em um esforço considerável para soar original, Stephen King foi, a meu ver, infeliz na escolha de alguns elementos de sua saga. Destaco as referências a Star Wars e a Harry Potter no volume V - Lobos de Calla - e também no volume VII - A Torre Negra, que a meu ver são um tanto ridículas (no nível "vergonha alheia", se é que vocês me entendem). Não que sejam trabalhos necessariamente ruins, mas, sinceramente, não sei e não tenho como saber se SW e HP são em si "lindy" - se não forem, daqui a uns 50 anos quase ninguém mais entenderá o que o Stephen King quis dizer quando descreveu que os rostos dos lobos de Calla eram iguais ao do C-3PO por baixo das máscaras, ou quando escreveu que o Rei Rubro lutou contra o pistoleiro Rolland usando um incrível "Pomo de Ouro - modelo Harry Potter".

Lovecraft era quase um puritano e evitava temas como romance, sexo e sexualidade em suas obras, deixando este tipo de coisa no máximo implícito (o conto dele que em tal tema é mais abordado é A Sombra sobre Innsmouth, e mesmo assim é algo que fica no background). Além disso, a vida particular dos personagens só era abordada se contribuísse de alguma maneira para a narrativa: ele se concentrava nos aspectos psicológicos e em detalhes como a profissão e formação acadêmica/cultural de seus personagens. Por outro lado, talvez alguns de seus personagens soem um tanto rasos - até porque geralmente o foco dos contos lovecraftianos é a situação vivida pelo personagem e suas consequências para aquele personagem, e não o personagem em si.

Stephen King, por outro lado, não tem tanto pudor em suas obras, vide a polêmica cena escrita em It. Além disso, ele gosta de descrever cenas cotidianas dos personagens, mesmo que elas não contribuam para a narrativa (brigas domésticas, o personagem assistindo um filme, lendo um livro, indo para um bar e, infelizmente, ele também já descreveu os personagens indo ao banheiro - vide o infame O Apanhador de Sonhos, o livro favorito de ninguém). 

Lovecraft consegue dar boas soluções para suas tramas tanto nas histórias curtas quanto nas maiores que ele escreveu (Nas Montanhas da loucura é o melhor exemplo). Por outro lado, algumas das histórias que não envolvem diretamente o horror cósmico acabam sendo enfadonhas (A Tumba é para mim uma história bem chata, assim como Os Ratos nas Paredes)

Stephen King, por outro lado, geralmente brilha mais nas histórias curtas e tende a estragar os finais de seus livros mais longos (It é um exemplo disso: excelente no começo e no meio, com o final ruim; o mesmo acontece com A Dança da Morte). Surpreendentemente, na minha opinião, os melhores livros dele são os que não são de terror (À Espera de um Milagre, Misery e A Zona Morta são muito bons e para mim são melhores do que, por exemplo, toda a série da Torre Negra e do que A Dança da Morte). 

Lovecraft, criando seu Mythos, foi bastante criativo e acabou lançando o gênero do horror cósmico. Ele conseguiu, assim, fugir de alguns clichês da literatura gótica (Que já eram clichês na época dele). Sua originalidade era inteligente e rendeu bons frutos para a literatura.

Stephen King, porém, às vezes pesa a mão na originalidade e acaba criando coisas e situações bizarras demais. Um exemplo disso é o livro Os Justiceiros, em que o monstro da história é um antigo espírito maligno que se apossa do corpo de um garotinho e seus poderes incluem tornar realidade as coisas que seu hospedeiro tinha em sua imaginação - o que faz com que os demais personagens da história sejam atacados por criaturas que pareciam literalmente terem sido desenhadas por crianças. 

As bizarrices que Stephen King escreveu nos levam a um outro ponto desta crítica: Lovecraft nunca alcançou grande status na vida, tendo vivido frugalmente e morrido pobre, sem ter recebido nada por diversos trabalhos e recebendo muito pouco por algumas de suas histórias. Com isso, me parece que ele era muito mais cuidadoso ao escrever, pois era escritor freelancer e sempre dependia da boa vontade do editor. King, por outro lado, em certo momento da vida atingiu um status de "escritor pop", "superstar", conhecido e reconhecido mundialmente, e isso lhe deu uma liberdade excessiva, o que fez com que ele fosse capaz de publicar absolutamente qualquer coisa, pois qualquer coisa que leve o nome dele irá vender, não importa a qualidade. As restrições são o que fazem a criatividade realmente aflorar e produzir obras de qualidade e resistentes ao  teste do tempo. O excesso de liberdade na escrita geralmente produz histórias de má qualidade.

Em nenhum momento eu quis dizer que Stephen King escreve mal: apenas que H.P. Lovecraft escreve muito melhor. 

Já li muitos livros do S.K. (e talvez escreva resenhas de alguns deles em meu humilde blog), mas hoje em dia só tenho alguns selecionados em minha estante. Acho que a faixa etária mais adequada para ler Stephen King é aquela época entre os 15 e os 25 anos. Eventualmente você acaba lendo outros autores, amadurece e deixa de considerá-lo tão impressionante.  

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Criando um clima gótico em uma aventura

Sentem-se ao redor da fogueira, meus amigos. 

Hoje vou contar algumas coisas sobre as aventuras góticas.      

Está escrito em todos os guias de campanha de Ravenloft lançados até hoje (desde a Black Box, passando pelo Domínios do Medo e até os livros da 3.5) que as aventuras devem ter um "clima gótico" e geralmente colocam como sugestão os livros góticos clássicos para servirem de inspiração para o mestre (Drácula, Frankenstein, etc.).

    Uma coisa que muitos jogadores não entendem (principalmente os que foram criados na 5e), é que o clima de Ravenloft não pode ser igual aos RPG estilo High Fantasy, como o D&D clássico (inspirado em Senhor dos Anéis), em que um grupo de heróis poderosos, vivendo em um reino encantado, se unem em uma aventura épica, repleta de itens mágicos e NPCs dispostos a ajudá-los, e enfrentam um mago malvado no alto de uma torre ou um chefe orc que está saqueando vilarejos em duelos repletos de pirotecnia, lances heroicos, e por aí vai. 

    Em um jogo High Fantasy, o bem e o mal são claramente definidos e distintos: os heróis são obviamente heróis - muito embora possa eventualmente haver um traidor escondido - e os vilões são claramente vilões - embora às vezes alguns tenham sua redenção. Também há muita magia no mundo, geralmente magia antiga e boa (remetendo à ideia de um mundo mais próximo do Criador ou pelo menos não tão caído quanto a humanidade da vida real) e há um clima de que "tudo vai acabar bem, tudo já está bem" - há uma "ideia central" de que os heróis estão destinados a vencer, não importam as circunstâncias.

    Em um jogo de clima gótico, ao contrário, o bem e o mal não são tão claramente definidos: tanto heróis quanto vilões tem a tendência de possuírem uma "moralidade cinzenta".

  -Pode haver personagens do lado dos heróis que escondam terríveis falhas de caráter (geralmente baseadas nos pecados da covardia e da ira), passados tenebrosos (geralmente envolvendo a morte de familiares nas mãos de monstros, ou alguma terrível injustiça que sofreu), ou objetivos escusos (o mais comum sendo a vingança). Assim, em uma aventura gótica, os heróis (ou os NPC que eventualmente os ajudem) podem acabar tomando atitudes drásticas e reprováveis, atitudes estas que os heróis de aventuras High Fantasy normalmente não pensariam em tomar - por exemplo, torturar um prisioneiro, ameaçar um camponês para obter uma informação, matar um inimigo desarmado a sangue frio, aliar-se a um monstro para combater outro monstro ainda pior etc.



  -Os vilões também tendem a ser trágicos (geralmente já foram pessoas boas e com passados tenebrosos que explicam, embora não justifiquem, sua queda para as trevas) e geralmente são maus de uma maneira mais realista (os vilões de RPG High Fantasy tem a tendência de serem mais cartunescos, como o Esqueleto, vilão de He-Man) e muito mais fria (pensem no Conde Drácula, no sr. Hyde, na vampira Carmilla, etc.).




 - Os NPCs que surgem na aventura tendem a tratar os personagens com hostilidade e desconfiança (refletindo o caráter cruel do mundo onde a aventura se passa) ou então fazem o tipo "falso amigo" que começa ajudando os PJ para em seguida entregá-los aos vilões. Ou podem ter algum motivo secreto para querer se vingar de um dos PJ ou simplesmente prejudicá-los (geralmente os motivos são brigas antigas de família, ou porque o PJ em questão lembra algum antigo desafeto do NPC, ou um aversão especial a alguma classe de personagem - por exemplo, o taverneiro que não gosta de ciganos e bardos, ou o prefeito que desconfia de magos, arcanistas, etc).


    - O próprio cenário da história tende a refletir esta "moralidade cinzenta" e geralmente é sombrio e desolado. O ambiente mais comum da literatura gótica é o castelo em ruínas (dando uma ideia de um passado glorioso que entrou em decadência - que nem o background de muitos vilões) - aliás, este foi o ambiente que estreou este gênero literário. Portanto, os ambientes adequados para uma aventura gótica são, além do castelo arruinado: mansões abandonadas, mansões de famílias decadentes, igrejas em ruínas, cemitérios, criptas, cidades miseráveis governadas por tiranos, florestas à noite, a cabana isolada de um caçador, um manicômio, etc. - notem que são ambientes que refletem coisas como decadência, solidão, segredos obscuros, a morte, e por aí vai.



   

- Além disso, geralmente o cenário envolverá elementos como a escuridão da noite, o frio do inverno, o mistério das névoas, entre outros - todas estas coisas também refletem os temas da solidão, morte, segredos escondidos, etc. 

(Embora haja ao menos uma aventura de Ravenloft que se passa no deserto - "Touch of Death" - na minha opinião pessoal ambientes de clima quente não combinam muito com a temática gótica)

- A magia em aventuras góticas não pode nunca ser usada levianamente, pois quase sempre vem acompanhada de um alto custo para o personagem que a utilizar. Geralmente cenários de aventuras High Fantasy têm muitos itens mágicos que ajudam os heróis. Em aventuras góticas, ao contrário, os itens mágicos geralmente são muito perigosos ou cobram um preço alto por seu uso (podem ajudar a derrotar o vilão, mas amaldiçoam quem os manejar, por exemplo). Além disso, os usuários de magia em geral tendem para o lado do mal (há muito mais necromantes do que "magos do bem" nestes cenários, por exemplo). Sendo assim, se uma aventura gótica girar em torno da busca por um determinado item mágico, ele provavelmente terá estas características negativas. Se houver um NPC usuário de magia, ele provavelmente será alinhado ao mal.


- Por fim, use poucos monstros, mas faça com que cada encontro seja perigoso para os PJ. Uma aventura gótica não deveria ser do tipo "Dungeon Crawl", repleta de monstros que se enfileiram para serem mortos pelos PJ em dungeons com salas infinitas. Os monstros em uma aventura gótica devem preferencialmente contribuir de alguma maneira para a trama, mesmo os lacaios dos vilões principais. Reparem que até monstros clássicos da High Fantasy, como os goblins, podem cumprir este papel. 

        - Por exemplo, em uma aventura gótica, ao invés de combater e matar aos baldes um batalhão de goblins numa masmorra subterrânea (que geralmente ou são guardas da masmorra ou estão lá por "no reason at all"), o grupo de aventureiros irá enfrentar um pequeno bando de goblins que tentou assaltar seu acampamento durante a madrugada, e provavelmente irá capturar e interrogar o líder do bando e com isso descobrir que eles servem a uma feiticeira que vive numa cabana oculta na floresta, trazendo vítimas para seus rituais malignos.

Caso eu me lembre de mais dicas, irei acrescentando neste ou em futuros posts.


Se você estiver interessado em aventuras com ambientação gótica, visite minha loja no DrivethruRPG. Devagar e sempre irei publicar mais títulos!