segunda-feira, 24 de maio de 2021

Duelo: Stephen King vs H.P. Lovecraft

Saudações, aventureiros! 

Hoje trago uma comparação entre dois bardos do século XX que se especializaram em compor trovas de meter medo... O bizarro Howard Philips Lovecraft e o estranho Stephen King.

Na opinião deste bardo que vos escreve, não tem nem discussão. Embora sejam autores com estilos diferentes, Lovecraft ganharia de lavada em um duelo de trovas.

Vou explicar o porquê.

Primeiramente, para contextualizar: eu diria que Lovecraft pode ser considerado um autor gótico (do fim do período da literatura gótica), enquanto que Stephen King é um escritor contemporâneo, cuja "classificação literária" ainda não foi inventada, na minha opinião (quer dizer, alguns o classificam como um "autor pós-moderno", mas na humilde opinião deste bardo, esta é uma "categoria-tampão" usada para qualquer autor contemporâneo que não se encaixe em algo mais específico).

Lovecraft descrevia de maneira magistral os cenários de suas histórias, principalmente no que tange à arquitetura e à paisagem, bem como o terror psicológico pelo qual seus personagens passavam. Ele sabia dar boa profundidade aos personagens mesmo em histórias curtas.  A meu ver, suas histórias são atemporais. Por mais que praticamente todas se passem no início do século XX e algumas no final do século XIX, há uma sensação (pelo menos para mim) de que elas nunca "ficarão velhas", nunca precisarão ser atualizadas. 

As histórias do Stephen King, por outro lado, não são atemporais, de uma maneira geral. Ele tem um estilo de escrita em que, para dar mais profundidade aos personagens e riqueza de detalhes ao cenário, enche a história de referências à cultura pop. Por causa disso, seus livros tendem a ficarem muito presos à época em que foram escritos. Óbvio que há exceções (no momento me lembro principalmente do livro Os Olhos do Dragão, acho que o único dele que se passa na idade média, e do A hora do lobisomem, que é uma história tão curta que praticamente não tem um background), mas no geral os livros dele são assim mesmo.

Claro que isso tem um lado bom, pois não deixa de ser uma forma de registro histórico cultural de uma determinada época que ficará para a posteridade. Mas, por outro lado, isso pode fazer com que eventualmente a história fique, digamos, "incompreensível" em algumas partes com o passar dos anos. Por exemplo, ele já teve que atualizar as referências culturais quando publicou a versão revisada de um dos seus mais importantes trabalhos, The Stand (publicado aqui na Terra de Santa Cruz como "A Dança da Morte"). E quando sua obra-prima It (traduzido como "A Coisa" desde os tempos da saudosa editora Francisco Alves) foi novamente transformada em filme há poucos anos, todas as referências também precisaram ser atualizadas - o livro se passa nos anos 50 quando os personagens são crianças e nos anos 80 quando eles são adultos. Nos filmes novos, colocaram os personagens sendo crianças nos anos 80 e a parte adulta se passando nos anos 2010, pois foi "necessário" atualizar as referências culturais. Espero que o King não sinta a necessidade de  atualizar mais este livro... muito embora eu nem considere que It seja um livro tão carregado assim de referências.

Um dos maiores exemplos deste problema de referenciar cultura pop é aquele que S.K. considera como sua "obra-prima": a série da Torre Negra. Em um esforço considerável para soar original, Stephen King foi, a meu ver, infeliz na escolha de alguns elementos de sua saga. Destaco as referências a Star Wars e a Harry Potter no volume V - Lobos de Calla - e também no volume VII - A Torre Negra, que a meu ver são um tanto ridículas (no nível "vergonha alheia", se é que vocês me entendem). Não que sejam trabalhos necessariamente ruins, mas, sinceramente, não sei e não tenho como saber se SW e HP são em si "lindy" - se não forem, daqui a uns 50 anos quase ninguém mais entenderá o que o Stephen King quis dizer quando descreveu que os rostos dos lobos de Calla eram iguais ao do C-3PO por baixo das máscaras, ou quando escreveu que o Rei Rubro lutou contra o pistoleiro Rolland usando um incrível "Pomo de Ouro - modelo Harry Potter".

Lovecraft era quase um puritano e evitava temas como romance, sexo e sexualidade em suas obras, deixando este tipo de coisa no máximo implícito (o conto dele que em tal tema é mais abordado é A Sombra sobre Innsmouth, e mesmo assim é algo que fica no background). Além disso, a vida particular dos personagens só era abordada se contribuísse de alguma maneira para a narrativa: ele se concentrava nos aspectos psicológicos e em detalhes como a profissão e formação acadêmica/cultural de seus personagens. Por outro lado, talvez alguns de seus personagens soem um tanto rasos - até porque geralmente o foco dos contos lovecraftianos é a situação vivida pelo personagem e suas consequências para aquele personagem, e não o personagem em si.

Stephen King, por outro lado, não tem tanto pudor em suas obras, vide a polêmica cena escrita em It. Além disso, ele gosta de descrever cenas cotidianas dos personagens, mesmo que elas não contribuam para a narrativa (brigas domésticas, o personagem assistindo um filme, lendo um livro, indo para um bar e, infelizmente, ele também já descreveu os personagens indo ao banheiro - vide o infame O Apanhador de Sonhos, o livro favorito de ninguém). 

Lovecraft consegue dar boas soluções para suas tramas tanto nas histórias curtas quanto nas maiores que ele escreveu (Nas Montanhas da loucura é o melhor exemplo). Por outro lado, algumas das histórias que não envolvem diretamente o horror cósmico acabam sendo enfadonhas (A Tumba é para mim uma história bem chata, assim como Os Ratos nas Paredes)

Stephen King, por outro lado, geralmente brilha mais nas histórias curtas e tende a estragar os finais de seus livros mais longos (It é um exemplo disso: excelente no começo e no meio, com o final ruim; o mesmo acontece com A Dança da Morte). Surpreendentemente, na minha opinião, os melhores livros dele são os que não são de terror (À Espera de um Milagre, Misery e A Zona Morta são muito bons e para mim são melhores do que, por exemplo, toda a série da Torre Negra e do que A Dança da Morte). 

Lovecraft, criando seu Mythos, foi bastante criativo e acabou lançando o gênero do horror cósmico. Ele conseguiu, assim, fugir de alguns clichês da literatura gótica (Que já eram clichês na época dele). Sua originalidade era inteligente e rendeu bons frutos para a literatura.

Stephen King, porém, às vezes pesa a mão na originalidade e acaba criando coisas e situações bizarras demais. Um exemplo disso é o livro Os Justiceiros, em que o monstro da história é um antigo espírito maligno que se apossa do corpo de um garotinho e seus poderes incluem tornar realidade as coisas que seu hospedeiro tinha em sua imaginação - o que faz com que os demais personagens da história sejam atacados por criaturas que pareciam literalmente terem sido desenhadas por crianças. 

As bizarrices que Stephen King escreveu nos levam a um outro ponto desta crítica: Lovecraft nunca alcançou grande status na vida, tendo vivido frugalmente e morrido pobre, sem ter recebido nada por diversos trabalhos e recebendo muito pouco por algumas de suas histórias. Com isso, me parece que ele era muito mais cuidadoso ao escrever, pois era escritor freelancer e sempre dependia da boa vontade do editor. King, por outro lado, em certo momento da vida atingiu um status de "escritor pop", "superstar", conhecido e reconhecido mundialmente, e isso lhe deu uma liberdade excessiva, o que fez com que ele fosse capaz de publicar absolutamente qualquer coisa, pois qualquer coisa que leve o nome dele irá vender, não importa a qualidade. As restrições são o que fazem a criatividade realmente aflorar e produzir obras de qualidade e resistentes ao  teste do tempo. O excesso de liberdade na escrita geralmente produz histórias de má qualidade.

Em nenhum momento eu quis dizer que Stephen King escreve mal: apenas que H.P. Lovecraft escreve muito melhor. 

Já li muitos livros do S.K. (e talvez escreva resenhas de alguns deles em meu humilde blog), mas hoje em dia só tenho alguns selecionados em minha estante. Acho que a faixa etária mais adequada para ler Stephen King é aquela época entre os 15 e os 25 anos. Eventualmente você acaba lendo outros autores, amadurece e deixa de considerá-lo tão impressionante.  

2 comentários:

  1. DUELO DE METER MEDO OU KNOCK-OUT RELÂMPAGO ?

    Excelente dissertação comparativa entre dois autores da literatura - sendo um deles, Lovecraft, um autêntico representante de alto nível do gênero horror, e o outro, um mero subproduto da indústria mainstream: opaco, superficial e fadado à obsolescência.

    De vez em quando, essas figuras como Stephen King são tiradas do obscurantismo, projetadas no mercado com toda pompa e alarido para, simplesmente depois, serem esquecidas juntamente com aquilo de inexpressivo com o qual se projetaram.

    Assim, concordo com tudo o que tu disseste, ó Bardo; o que, em resumo, significa dizer que Lovecraft ganha de Stephen King logo nos primeiros segundos do primeiro round - apesar da torcida majoritariamente contra (como sempre acontece nos grandes confrontos), e que nada entendem de combate.
    Haha !!!

    H. P. Lovecraft, assim como Edgard Allan Poe, viveu e morreu pobre, como tu bem assinalaste.
    Ele não foi alguém supervalorizado ao extremo sem ter os méritos para tanto e tampouco mimado, como ocorreu com King.
    Por conta disso, Lovecraft precisou realmente mostrar que tinha méritos como escritor, ao invés de simplesmente ser alguém que apenas se aproveita dos louros da glória na qual uns e outros às vezes vêem os seus nomes serem contemplados e alçados à categoria de "fenômeno" apenas pra render bons lucros.
    Lovecraft foi e é um autor renomado; Stephen King é muito mais um fenômeno de marketing. Não é à toa que precisa ficar reescrevendo continuamente suas bobagens a fim de adaptá-las à passagem do tempo.

    Outro gigante esquecido, e ídolo de Lovecraft, foi Algernon Blackwood, autor do conto "Os Salgueiros" (The Willows) - que deixou de tal maneira estupefata a escritora Heloísa Seixas, quando esta se deparou com uma edição fuleira encontrada em um sebo, que não sossegou enquanto não traduziu para o português tanto o conto como alguns outros trabalhos desse importante e quase desconhecido Mestre do horror.

    Numa carta para o também escritor Vincent Starrett, em 1927, Lovecraft afirmou que o texto de Blackwood é "a mais estranha e a melhor weird story que já havia lido, apesar dos oceanos de puerilidade implacável que ele [Blackwood] tão freqüentemente derrama". 
    Não sabemos sobre qual objeção Lovecraft faz menção. No entanto, Algernon Blackwood também teve uma enorme influência no desenvolvimento dos Mitos de Cthulhu, como o próprio Lovecraft afirmou.

    O grande mestre, porém, teria tido uma opinião menos gentil sobre o trabalho de Lovecraft quando afirmou, na única referência disponível, que encontrou "terror espiritual" ausente nas histórias de seu admirador mais jovem.

    P.S.: "A Casa do Passado" (coletânea do contos de Algernon Blackwood) tornou-se uma obra rara e bem cotada no mercado. A própria Heloísa Seixas, que reuniu a coletânea, afirmou que ela mesma só tem um exemplar.
    Felizmente, adquiri o meu exemplar assim que o livro foi lançado na época. E eu era só um moleque.

    Tony

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    1. Obrigado por mais um comentário, Tony!
      Que bom encontrar alguém que pensa parecido comigo a respeito de Stephen King, que é realmente superestimado.
      Eu já li "Os Salgueiros" e realmente é um conto bem interessante. Não fazia ideia que Blackwood fosse tão importante assim... Vou procurar ler mais coisas dele e ver se concordo com a crítica feita pelo Lovecraft.

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