sábado, 26 de fevereiro de 2022

O dinheiro nos mundos de RPG

Um detalhe que geralmente não é percebido pelos mestres de jogo e pelos autores de aventuras é a questão do dinheiro. Às vezes ele parece que não serve para nada no jogo, ao mesmo tempo que "serve" (no sentido de talvez impedir o acesso dos jogadores a algum item importante no começo de uma aventura - isso, é claro, supondo que um item realmente importante esteja à venda, o que acredito que não seja algo tão comum assim!), ou como recompensa por alguma missão, ou para que os jogadores usem para subornar um guarda de um portão de uma cidade ou fortaleza. 

Mas o que eu já observei é que geralmente não há um padrão. 

Já vi aventuras em que uma moeda de ouro é muito, e outras em que uma moeda de ouro é "troco". 

Tem aventuras em que só existem moedas de ouro; tem outras em que existem também as de prata e as de cobre. 

Tem outras ainda mais detalhadas em que colocam moedas de platina. 

E tem outras com muito mais detalhes em que colocam até mesmo moedas de electrum (liga de ouro e prata usada pelos antigos gregos).

Na real, isso nem importa muito, o que importa é o mestre e os jogadores se divertirem, então realmente não é necessário ser rigoroso quanto à questão do dinheiro. 

Uma bela coleção de moedas do mundo real. Recomendo o hobby!


Eu vejo isso mais como uma questão de capricho do mestre do jogo ou do autor da aventura, uma questão de gosto pessoal, valorizada por mestres e autores que gostem e tenham interesse pelas áreas de História e Economia (como é o meu caso). 

Mas, obviamente, isso praticamente só é valorizado (se for valorizado at all) pelo mestre ou pelo autor da aventura. Os jogadores, óbvio, só querem saber de matar monstros, upar, interpretar cenas épicas, interpretar brigas de taverna, enganar guardas para entrar em cidades ou castelos de entrada proibida, e por aí vai. 

Mesmo assim, julgo importante que, independente do nível de detalhes da economia dentro de uma aventura ou campanha de RPG, haja um padrão, uma lógica, uma consistência no preço das coisas, para evitar distorções bizarras que podem ser facilmente notadas pelos jogadores - por exemplo, imagine que um ferreiro cobre 10 moedas de ouro por uma espada longa, e na mesma cidade uma noite na hospedaria local custe também 10 moedas de ouro. E na cidade vizinha uma faca custa 20 moedas de ouro. Isso geralmente acontece quando os preços das coisas são decididos na hora pelo mestre, sem planejamento prévio. 

Em termos práticos isso muda de fato alguma coisa? Não. Mas os jogadores podem perceber que não há um padrão e isso pode quebrar um pouco a imersão no jogo e provocar distorções no modo como eles enxergam os tesouros que encontrarem e as recompensas que receberem por seus feitos.

Por exemplo: os heróis entram na oficina de um ferreiro para comprar armas novas. Quanto o ferreiro vai cobrar por uma espada? Uma espada longa é mais barata que uma espada de duas mãos? Um machado é mais barato ou é mais caro que um martelo de guerra? E um arco? Quanto custa um arco? A recompensa que o prefeito está oferecendo ao grupo será suficiente para eles renovarem seu equipamento, curarem os ferimentos após as batalhas e etc.?

Vou compartilhar aqui como eu faço para escolher os preços das coisas nas aventuras que escrevo. Não é nada "do outro mundo", mas cumpre seu propósito de criar um padrão:

Primeiro, eu gosto da ideia de usar somente três tipos de moedas: cobre, prata e ouro. E gosto de quantidades pequenas e "redondas" para fazer a conversão de uma moeda para outra. Geralmente eu estabeleço que uma moeda de ouro vale 20 moedas de prata e que uma moeda de prata vale 50 moedas de cobre. Assim, uma moeda de ouro valeria mil moedas de cobre.

Então resumindo o câmbio:

1 ouro = 20 pratas = 1.000 cobres

1 prata = 50 cobres

Segundo: eu não faço uma ideia muito detalhada dos preços das coisas na Europa medieval, mas graças às minhas leituras sei que 1 pão custava uma moeda de cobre (isso na França, no reinado de São Luís, o qual mandou cunhar essas moedas de cobre que ficaram conhecidas como "denário da esmola"). 

Como o cobre é, digamos, o mais básico dos metais usados para fabricar moedas (é encontrado na natureza em certa abundância e é fácil de ser trabalhado), então acho razoável, para fins recreativos, assumir que em praticamente qualquer lugar na Europa medieval um pãozinho custasse uma moeda de cobre, considerando que o pão fosse o produto mais barato de qualquer reino em tempos normais (óbvio que durante guerras e pestes ele ficaria muito mais caro, mas vamos simplificar as coisas).

Interior de uma típica taverna de RPG (créditos ao autor, creio que seja de um dos livros da Fighting Fantasy) - Disclaimer: if the owner of this image ever feels offended that I've posted it in my humble blog from which I get zero profit, then I am sorry. That's it.

Assim, partindo desta base, pensando em alimentos e bebidas, creio que uma tabela razoável de preços para uma taverna estilo "pé-sujo" de uma cidade pequena numa aventura de RPG seriam os seguintes:


Pão - 1 moeda de cobre;

Legumes "crus" - 1 moeda de cobre;

Refeição básica (pedaço de carne com batatas ou só as batatas, dependendo das condições do local) - 5 moedas de cobre;

Cerveja barata - 3 moedas de cobre;

Vinho barato - 4 moedas de cobre;

Hospedagem - diária de 8 moedas de cobre por pessoa


Estes são os valores básicos para uma cidade pequena numa taverna pé-sujo. Em cidades maiores e mais importantes, com tavernas e hospedarias melhores, os preços serão obviamente maiores. Talvez os personagens dos jogadores tenham que pagar em moedas de prata e até mesmo de ouro para bancar a hospedagem em uma capital importante. Pode ser que locais com cerveja de qualidade superior cobrem, digamos, 30 moedas de cobre (ou mais) por caneco. Essa estimativa me parece razoável!


E quanto às armas? Aqui eu acho que fica um pouco mais difícil pensar em preços justos, mas partindo de um raciocínio análogo ao do pão, considerando que uma faca de caça seja a arma mais básica feita por um ferreiro, creio que os preços seriam os seguintes (considerando um ferreiro de cidade pequena):

Faca de Caçador - 40 moedas de cobre (penso que um ferreiro antigo pudesse demorar um dia inteiro para fazer uma boa faca de caça, pois ele tem que acender a forja, esperar esquentar, pegar o ferro bruto (ou o bronze), martelar até ficar do tamanho e espessura certas, e depois afiar, lixar, fazer um cabo... se hoje em dia com maçaricos a gás e martelos hidráulicos ainda é difícil e demorado fazer uma faca artesanalmente, imaginem naquela época! Sendo assim, o preço da faca deveria cobrir no mínimo 2 refeições do ferreiro e ainda o salário de um ajudante ou aprendiz e dar lucro!)

Machadinha de arremesso - 1 moeda de prata

Feixe de 24 flechas - 2 moedas de prata (as pontas não eram difíceis de fazer, mas o processo de fabricação de uma flecha era complexo, pois uma flecha é feita de várias partes e precisava ser muito bem feita para que voasse em linha reta)

Lança - 3 moedas de prata

Maça ou Maça Estrela - 4 moedas de prata

Pique - 5 moedas de prata (fabricação mais complexa que a da lança)

Alabarda - 10 moedas de prata (fabricação mais complexa que a da lança)

Espada Curta - 5 moedas de prata

Espada Longa - 10 moedas de prata

Espada de duas mãos - 15 moedas de prata

Machado de batalha - 10 moedas de prata

A lógica aqui é a seguinte: quanto mais complexa a fabricação e quanto mais material for necessário, mais tempo o ferreiro irá gastar e portanto o preço precisará ser maior.

Estes são os preços básicos, passíveis de serem cobrados por um ferreiro de uma cidade pequena, creio eu. Em cidades mais populosas e mais importantes talvez haja ferreiros mais famosos e experientes e que por isso cobrem mais caro (pois suas armas seriam de melhor qualidade). Além disso, quaisquer coisas extras que os personagens queiram adicionar às armas (entalhes, jóias, banhos a ouro, gravações no metal, adornos em geral) aumentariam os preços e provavelmente não seriam possíveis de ser feitos por ferreiros de cidades pequenas.

A mesma lógica se aplicará aos carpinteiros (que fabricarão cajados,  bordões e escudos de madeira), aos fabricantes de arcos (um longbow deveria ser teoricamente o arco mais caro), coureiros (que farão algibeiras, corseletes de couro, escudos, etc) e aos fabricantes de armaduras.

Em relação ao preço de outras coisas o preço razoável fica ainda mais nebuloso, ainda mais se colocarmos a magia nesta equação (como precificar uma espada mágica? Ou uma poção de cura?) Eu sou da opinião de que itens mágicos, caso estejam à venda, devem sempre ser muito mais caros do que os seus equivalentes não-mágicos, de modo que não seja fácil comprá-los (e na maioria dos casos não faz muito sentido ter essas coisas à venda, exceto talvez poções de cura e remédios mágicos em geral). E acho também que qualquer item mágico deve ter seu preço sempre em moedas de ouro, considerando que existem as de prata e as de cobre.

Então se uma espada longa normal feita por um ferreiro de uma cidade pequena custasse 10 moedas de prata, uma espada longa + 1 custaria pelo menos 5 moedas de ouro. Uma espada longa +4 deveria custar umas 20 moedas de ouro, e por aí vai. Mesmo uma poção de cura deveria custar ao menos 1 moeda de ouro, para ilustrar o fato de que provavelmente elas não são fáceis de fazer e também para dificultar o jogo.

Assim, criando-se um padrão de comportamento dos preços das coisas em uma aventura, pode-se estabelecer recompensas mais realistas e valiosas para os jogadores. 

Afinal, se os preços das coisas forem aleatórios dentro do mundo do jogo, como que os jogadores vão saber se a recompensa de 500 moedas de ouro oferecida pelo burgomestre para quem matar o dragão que está aterrorizando os fazendeiros nos arredores da cidade realmente vale a pena? Dependendo de como as coisas estão precificadas, 500 moedas de ouro podem ser uma quantia colossal que permitirá aos heróis se aposentarem, comprarem terras e construírem castelos, ou pode ser muito pouco, de modo que os jogadores terão que negociar uma recompensa mais adequada.

Este é, ao menos, um pequeno benefício do autor da aventura levar mais a sério a questão do dinheiro e dos preços no mundo de fantasia que está criando.

Outra coisa que eu percebi como mestre é a seguinte: até que ponto o dinheiro  serve como recompensa que motive os jogadores (vejam bem, eu disse os jogadores, e não os personagens) a aceitarem missões perigosas ou, principalmente, ajudarem NPCs que acabaram de conhecer?

Acho que todo mestre já se deparou com um grupo em que os jogadores gostam de testar a paciência do mestre e fazem "jogo duro" para que seus personagens aceitem as missões. Praticamente nenhuma recompensa motiva esse tipo de jogador a cooperar mais com o mestre e ajudar a história a fluir. Se os jogadores sentirem dificuldade para comprar itens, armas, remédios, etc. por conta de seus preços, talvez se motivem mais a fazer com que seus personagens aceitem missões no jogo em troca de dinheiro.

Por fim, acho interessante dar nome ao dinheiro, para não ficar dizendo simplesmente "moedas de ouro", "moedas de prata", etc. Para isso, eu gosto de usar nomes de moedas antigas do mundo real ou inventar nomes para as moedas dos reinos de fantasia (e estes nomes inventados quase invariavelmente são baseados em nomes de moedas que existiram no mundo real, assim como praticamente tudo na fantasia).

Segue uma lista com bons nomes para moedas (entre parênteses o país do mundo real que usava estas moedas, conforme o caso):

Dracmas (Grécia)

Marcos (Alemanha)

Francos (França)

Thalers (Alemanha) - curiosidade: foi da palavra Thaler que surgiu o nome do Dólar

Escudos (Portugal)

Coroas (Suécia, Noruega, Islândia, Dinamarca)

Aureum (moeda de ouro do Império Romano)

Soldo (moeda de prata do Império Romano)

Sestércio (moeda de cobre do Império Romano)

Gros ou Groat ou Groschen (moeda de prata de diversos países da Europa medieval)

Soberano (moeda de ouro da Inglaterra)

Florim (moeda de ouro usada em diversos países europeus na idade média, principalmente nas cidades-Estado italianas)

Denário ou Dinar (moeda de ouro usada pelos árabes na idade média - muito provavelmente a palavra Denário deu origem à palavra "dinheiro")

Dirham (moeda de prata usada pelos árabes medievais)

Fuls (moeda de cobre usada pelos árabes medievais)

Ducado (moeda de prata usada em diversos países europeus na idade média)

Dracmas do mundo real



sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Problemas do RPG - qualquer clérigo faz milagres

 Saudações, aventureiros! 


Acho que esse é mais um dos problemas da 5a edição de D&D, a qual transformou os personagens dos jogadores em campeões de LOL (conforme já escrevi em vários outros posts deste meu humilde reduto).

Há algum tempo mestrei uma aventura de Ravenloft com um grupo de jogadores que só conheciam a 5a edição de D&D, e percebi o quanto é difícil criar situações que os jogadores percebam como perigosas. 

Vou ilustrar com um exemplo do que aconteceu:

(Após uma batalha contra uma árvore demoníaca, que usou seus galhos para chicotear os PCs e ainda disparou sementes dentro das feridas de um deles - algo que imaginei que se tornaria um problema para eles mais tarde, mas infelizmente estava errado)

DM: após a batalha vocês  se sentem exaustos e sentam-se no chão,  um pouco afastados da carcaça fumegante da árvore demoníaca. Dido, você sente uma dor muito forte em seu braço direito, e descobre que ele está quebrado. Você não conseguirá usar sua espada com a mão direita enquanto não se recuperar.

Dido, o elfo: Robert, por favor me ajuda aqui!

Robert, o clérigo: é pra já! Eu coloco as mãos em cima do braço dele, e lanço a magia "cura", e os ossos do braço dele se remendam no mesmo instante.

DM (surpreso e decepcionado): ... bem, continuando, Robert, você está sentindo dor e uma pulsação estranha nos cortes que a árvore demoníaca fez no seu peito. Você se sente assustado, imaginando o que possa ser. O suor começa a escorrer no seu rosto, com medo das possibilidades...

Giovani, o Ranger: vou tentar usar meus conhecimentos de plantas para entender o que está acontecendo (rola um teste bem sucedido de sabedoria). Robert, parece que a árvore plantou as sementes dela no seu peito.  Eu ja ouvi relatos de que esse tipo de planta faz isso quando sente que vai morrer... ela dispara sementes que se alimentam de sangue e fazem brotar uma nova árvore demoníaca no corpo da vítima!

Robert, o clérigo: eu vou usar a magia "cura" de novo, para matar a as sementes!

DM: você não pode fazer isso, porque isso não é um ferimento...

Robert: ah, mas é tipo uma doença,  um parasita, sei lá, então acho que serve. (Os demais jogadores concordam)

DM: ok, então, mas você já usou  suas 3 magias, então não vai poder usar essa agora.

Robert: tudo bem, vamos fazer um descanso longo... 

Robert: (literalmente 1 segundo depois) pronto, já  descansamos e já posso lançar minha magia... pronto, me curei. Matei as sementes. Agora vamos descansar de novo para eu recuperar esse slot de magia que eu gastei...(1 segundo depois) pronto, já descansamos e posso lançar todas as minhas magias de novo! Vamos lá!


Claro que eu como mestre poderia ter sido mais duro e cruel impedindo que o grupo executasse 2 descansos tão rápido assim, ou impedindo o clérigo de usar a magia para matar as sementes da árvore maldita, mas fazer o quê... o grupo gosta de jogar assim, fingindo que é LOL e não RPG de verdade, e um grupo de jogadores é algo raro hoje em dia (pelo menos no meu caso).

O que quis ilustrar nesse post é que as magias de cura dos  clérigos estão muito overpower, com um reles clérigo de nível 2 sendo capaz de emendar ossos quebrados instantaneamente. O que isso traz de ruim? Bem, isso significa que exceto em casos de morte instantânea, praticamente não há perigos para os jogadores, cujos personagens se tornam literalmente máquinas de matar. Acho que nem maldições funcionariam, pois se um clérigo de nível 2 consegue instantaneamente curar ossos quebrados, então nesse ritmo:

- no nível 3 ele provavelmente consegue curar licantropia, vampirismo, entre outras maldições típicas de mundos de fantasia (então só existem vampiros e lobisomens porque os clérigos simplesmente ainda não quiseram curar todos)

- no nível 4 ele provavelmente já é capaz de ressuscitar os mortos;

- no nível 5  a mera presença de um clérigo já impede que os membros do grupo sofram dano, por conta de sua "aura de cura";

- no nível 6, um clérigo não apenas cura doenças e maldições com sua mera presença: com uma simples magia que pode ser usada 20 vezes por dia (sem considerar os descansos longos), ele é capaz de criar vida, a partir do nada!

- a partir do nível  7, os clérigos já não fazem parte de grupos de aventureiros, pois estão ocupados criando novas formas de vida e sendo adorados como deuses em outras realidades

Etc. Etc.

(Reza a lenda que o Sol originalmente era um clérigo de nível 9 de D&D 5e)

Exageros à parte, acho que este é mais um exemplo de o quanto a 5a edição quebrou o jogo, pois quando praticamente qualquer clérigo consegue operar verdadeiros milagres, então qual perigo os jogadores estão correndo mesmo? Isso, aliado à mecânica dos descansos longos (qie não sei se é da 5e, mas vocês, meus 5 leitores, entenderam) acaba tornando um grupo de aventureiros praticamente invencível, e as aventuras se tornam somente uma partida de God of War: é só andar pra frente e atacar. Todo inimigo dropa poções de cura.

O jogo acaba virando Dragon Ball Z, em que ferimentos e até mesmo a morte não tem mais consequência nenhuma para os personagens.

O que acham disso?

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Reinos esquecidos - Ducado de Guelders

Saudações, nobres aventureiros!


Vamos ao segundo post da série dos Reinos Esquecidos!




O Ducado de Guelders (ou Gueldern), de certa forma um "vassalo" do Sacro Império Romano, foi fundado por volta do ano 1096 e cobria um território que hoje pertence à Holanda.

O primeiro Conde de Guelders foi Gerrard de Wassemberg.

Anteriormente conhecido como Condado de Guelders, seu governante foi promovido a Duque pelo Sacro Imperador Romano, em razão de suas vitórias militares contra o Ducado de Brabante (conforme veremos abaixo).

Suas terras férteis permitiram um robusto desenvolvimento agrícola e pecuário, de modo que muitos membros do povo comum não eram servos, mas sim homens livres (sim, amigos, ter terras e casas, nem que seja só um terreno pequeno com uma choupana e uma dúzia de galinhas, é algo libertador! Não acreditem nesses papos de que imóveis são "dinheiro parado" e "dinheiro perdido" - isso é conversa de quem quer te transformar em um escravo moderno! Fiquem ligados!)

A proximidade dos rios Reno e Ruhr (que atravessavam o território do ducado) facilitou o florescimento do comércio na região, que tornou-se relativamente próspera. A nobreza e os comerciantes de Guelders tornaram-se ricos, o que os permitiu tornarem-se aliados de outras potências da época, como o Bispado de Colônia e o Condado de Luxemburgo. Sua prosperidade econômica permitiu que o Ducado expandisse seus territórios não somente através da guerra, mas também através da compra de terras (principalmente terras que haviam sido dadas como garantia de empréstimos tomados por nobres estrangeiros - então fica a lição, nobres leitores: nunca deem suas casas e terrenos como garantia de empréstimo nenhum! Perder terras é muito mais caro do que perder dinheiro, lembrem-se disso!)

Em lilás, o Ducado de Guelders (notem a localização da Frísia, ao norte - em cinza escuro - e do Sacro Império Romano). Em rosa, os principais rivais de Guelders: Condado da Holanda, Bispado de Utrecht, e Ducado de Brabante)

O principal rival de Guelders era o Ducado de Brabante (aliado ao reino da Francia) - ambos disputavam a posse de territórios nas margens do Reno. Porém, o Duque de Guelders se aproveitou do envolvimento de Brabante na Guerra dos Cem Anos para expandir sua influência e conquistar mais territórios.

O povo da principal cidade, Guelders (a que deu nome ao Ducado) era conhecido por ser bastante belicoso. Tal reputação não foi à toa: durante todo o século XIV o Ducado passou por várias guerras civis, onde nobres rivais lutavam pelo poder. 

Foi durante uma destas guerras civis (uma entre pai e filho, vejam só!) que os burgúndios aproveitaram a oportunidade:  Carlos, o Bravo, da Burgúndia, resolveu intervir e ocupou o território do Ducado de Guelders, se auto-nomeando o novo Duque. 

Somente na geração seguinte é que Karel van Egmond, neto do Duque original, reconquistou a independência de Guelders, expandiu o território e ainda por cima desafiou a dinastia dos Habsburgos.

Entretanto, sua ousadia não serviu de exemplo por muito tempo: algumas de suas tropas o desertaram, e por fim o Ducado de Guelders foi conquistado pelos Habsburgos e incorporado a seu território.

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Em jogos de RPG:

- Creio que num jogo de Cthulhu Dark Ages, as profissões mais realistas para personagens originários de Guelders sejam a de Mercenário, Soldado, Bispo e Fazendeiro.

- Seria interessante um cenário de ficção histórica passado em alguma das guerras civis do Ducado (e os PJ seriam agentes de um dos nobres pretendentes ao trono e teriam a missão de sabotar a facção rival)

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Reinos Esquecidos - Frísia

 Saudações, aventureiros!


Vamos ao primeiro post de 2022! 

Espero que todos tenham tido uma excelente virada de ano e um excelente mês de janeiro! Quando paramos para pensar, 1 doze avos do ano já passou! E fevereiro já passou da metade!

Andei afastado do blog por motivos de trabalho (sim, tocar em tavernas e em praças já não dá mais tanto dinheiro quanto nos bons e velhos tempos, então mesmo um Bardo precisa ter um emprego "normal" hoje em dia...). 

Quem sabe com a venda de meus livros eu não consiga viver exclusivamente de RPG e consiga sair do  8h-18h?? 

Visitem minhas lojas no DriveThruRPG e no Dungeonist e ajudem este jovem autor a ganhar uma renda extra e continuar produzindo conteúdo para vocês, nobres leitores e seguidores do blog!


Bem, feita minha humilde propaganda, vamos ao post de hoje!


Vou começar esta série de posts sobre o que eu chamo de "Reinos Esquecidos", que são antigas nações européias que se dissolveram antes da grande consolidação dos Estados Nacionais ocorrida nos séculos XVII-XIX e que, portanto, não se tornaram países da forma como entendemos hoje em dia.

O primeiro "Reino Esquecido", que estreará a série, é a Frísia, lar do lendário guerreiro gigante Grutte Pier, o mestre da espada Zweihander!

Agora, sem mais delongas, aconcheguem-se perto da fogueira, pois o Bardo da Névoa lhes contará um pouco da história deste Reino Esquecido...

Bûter, brea, en griene tsiis; wa't dat net sizze kin, is gjin oprjochte Fries

"Manteiga, pão e queijo verde; se você não consegue dizer isso, você não é um verdadeiro Frísio"

A Frísia é uma região banhada pelo Mar do Norte, e geograficamente se localizava em territórios que hoje pertencem  à Alemanha, Holanda e Bélgica. Atualmente é considerada uma província holandesa.

Mapa da região Frísia, como era durante o reinado (ou ducado) de Redbad

De origem incerta, especula-se que os frísios vieram originalmente da Escandinávia e se estabeleceram na região que veio a ser conhecida como Frísia não muito tempo após a queda do Império Romano Ocidental - porém há relatos escritos por  romanos sobre os Frísios, principalmente os escritos por Plínio, o Velho, que dizem que aquele era um povo que vivia da agricultura e da pecuária. Provavelmente os historiadores romanos os consideravam só mais um dos povos da Germania. 

Esses "frísios originais" eventualmente desapareceram. 

Mais tarde, na Idade Média, a região da frísia foi novamente colonizada, e em sua história passou por muitos atritos com os Francos e Holandeses (por terra) e com os vikings (pelo mar e no litoral - os frísios também eram um povo marítimo, e eventualmente também se tornaram saqueadores, copiando as táticas vikings).

Não havia uma autoridade central - a Frísia era na verdade o conjunto de vários pequenos comunidades independentes, que se uniam militarmente em caso de necessidade. Não é muito claro se havia de fato uma liderança permanente naquele povo. Acredita-se que era uma nação composta por homens livres, e a pequena elite não dispunha de grande poder político. Todos os homens empunhavam armas, e esperava-se que cada um defendesse suas terras em caso de invasões. 

Entretanto, em grandes invasões ou guerras, um exército unificado seria formado, e um dos nobres seria eleito general (com mandato de apenas 1 ano).

O primeiro "rei" (ou duque, dependendo do historiador) dos frísios a respeito do qual existem registros históricos foi Aldgisl (ou Aldegisel ou, aportuguesando, Aldegiso), a respeito do qual sabe-se muito pouco, somente que ele liderou os frísios em guerras contra os francos pela posse de antigas fortificações romanas na região. Além disso, Aldegiso abrigou em suas terras o bispo saxão Wilfrid (o qual mais tarde seria canonizado santo). Wilfrid foi encorajado e apoiado por Aldegiso a batizar e evangelizar o povo Frísio.

Rei Aldegiso

Outro rei importante foi Redbad (ou Radbod, ou aportuguesando, Redebaldo), possível sucessor de Aldegiso (talvez tenha sido seu filho) o qual resolveu infelizmente regredir aos costumes pagãos na Frísia, expulsando padres e bispos que haviam se instalado na região (entre eles, São Wilibrord, missionário e bispo anglo-saxão). 

Há uma lenda de que Redbad quase se converteu, e mudou de ideia no último momento, a apenas instantes de ser batizado, quando foi-lhe dito que ele não encontraria seus ancestrais no Paraíso (uma vez que eles haviam morrido pagãos). Conta-se que Redbad teria dito que preferia se reunir com seus ancestrais pagãos no inferno do que se juntar a "mendigos" no Paraíso. (Na opinião deste humilde Bardo, esta lenda parece contradizer o relato de que Redbad seria o filho de Aldegiso, pois este provavelmente havia se convertido e portanto poderia ser encontrado no Paraíso... a não ser que Aldegiso não houvesse sido convertido em sua época, muito embora tenha apoiado a evangelização feita por São Wilfrid)

Redbad lutou sucessivamente contra os Francos, obtendo algumas vitórias, mas eventualmente foi derrotado (por ninguém menos que Carlos Martelo, um dos grandes campeões da Cristandade).

Rei Redbad

Os Burgúndios também tentaram conquistar a Frísia, mas nunca conseguiram (ou nunca dispuseram de homens suficientes) para propriamente ocupá-la, de forma que a Frísia permaneceu por muito tempo relativamente livre, com seu sistema social de homens livres e comunidades autônomas funcionando de maneira normal.

Foi por volta de 1500, com uma invasão alemã (mercenários atuando sob a alcunha de "A Companhia Negra") financiada pelos burgúndios, que Grutte Pier iniciou uma revolta camponesa, apoiado pelo Duque de Guelders. A revolta de Grutte Pier se estendeu até mesmo por território holandês, e algumas cidades e fortalezas litorâneas foram pilhadas e conquistadas. Entretanto, tal esforço não conseguiu ser sustentado por muito tempo, e eventualmente a Frísia foi conquistada pelos Habsburgos (por volta de 1524).

Grutte Pier, conforme já escrevi neste blog, não morreu em batalha: retirou-se, frustrado, da guerra, e morreu de causas naturais em sua própria casa, aos 40 anos de idade.

Até hoje o dialeto frísio é falado na região, e seus habitantes possuem bastante orgulho de suas origens e de sua história.


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Em um jogo de RPG:

- Obviamente a Frísia (assim como qualquer país, nação, etc.) pode ser usada como pano de fundo para um jogo com uma pegada mais histórica e realista - e a aventura poderia ser centrada em alguma invasão dos Burgúndios à Frísia, ou em alguma expedição de Grutte Pier.

- Em um jogo de Cthulhu Dark Ages, creio que as profissões mais plausíveis para PJs frísios seriam as seguintes: marinheiro, mercenário, mercador e fazendeiro;

- Em um jogo estilo AD&D, creio que PJ frísios combinem mais com as classes guerreiras (Guerreiro, Paladino, Vingador, Bárbaro, etc.)