quarta-feira, 19 de agosto de 2020

A 5ª edição de D&D - Impressões de um jogador "old school" - parte 2


Quando mestrei pela primeira vez uma aventura usando as regras da 5ª edição de D&D (D&D nutella), percebi outra característica das aventuras "épicas" que me incomoda: os monstros da 5ª edição são muito fracos em comparação aos de AD&D 2e. Muitos deles parecem que foram feitos para serem "apenas minions" de modo que um PJ consegue matar meia dúzia de goblins e kobolds com um só golpe, e até mesmo um ogro é um adversário fácil para um grupo de PJ de 1º nível, enquanto que na época de AD&D um ogro poderia ser o "subchefe" ou até mesmo o "chefão" de um cenário para jogadores iniciantes (como é o caso de "A tumba de Demara", o cenário introdutório do kit First Quest, de AD&D, com o ogro Bonegnhaser, que seria facilmente estraçalhado por um grupo de PJ nível 1 da 5e). Goblins e kobolds, embora monstros menores, seriam um pequeno desafio quando em um grupo de 5 ou mais naquela época.

E essa fraqueza dos monstros ainda é agravada pelo fato de que os PJ da 5ª edição parecem mais campeões de LOL do que personagens de "RPG de mesa", conforme escrevi na primeira parte deste artigo.

Sendo assim, sugiro as seguintes "regras" e subterfúgios para contornar esse problema e criar desafios maiores para os jogadores:

1 -Se você faz questão que os monstros realmente tenham pontos de vida, então o total de PV de um monstro importante que deve ser enfrentado pelos jogadores (como um "subchefe", ou um NPC maligno que persegue os jogadores) deve ser pelo menos igual à metade da soma dos pontos de vida dos PJ, independente do tipo de monstro, e o total de pontos de vida do monstro principal, o "chefão final" da aventura, deve ser no mínimo igual à soma dos PV de todos os PJ. Assim, se o grupo composto por Bert, o Bardo (40 PV), Allain, o Mago (35PV), Ulfbert, o Guerreiro (50PV) e Magnus, o Clérigo (45PV), enfrenta Hagler, o Ogro, então este vilão deveria ter por volta de 85PV (metade da soma dos PV dos PJ). Hagler é o principal servo  da terrível bruxa Miek'le, que é a principal vilã da aventura, e ela deveria ter 170 ou mais PV (que é o total da soma dos PV dos PJ);

2 - Se você realmente quiser que os PJ tenham um desafio de verdade e se sintam desafiados, então sugiro que os monstros principais (chefe, subchefe e os "capitães" dos minions) não tenham pontos de vida, e que você estabeleça uma "meta" do estrago que eles devem causar antes de permitir que sejam derrotados ou mortos pelos PJ - por exemplo, o mestre decide que o ogro Hagler só morrerá após ter conseguido deixar pelo menos dois dos PJ inconscientes, e o primeiro ataque dele quando encontra os heróis é praticamente impossível de ser bloqueado, para gerar tensão e uma sensação de "agora fodeu" entre os jogadores, então nada do que eles fizerem até que essa meta seja atingida será suficiente para derrotar Hagler;

3 - Se os monstros enfrentados são realmente apenas "minions" que só servem para atrapalhar e atrasar o progresso dos PJ, então a quantidade de PV deles não importa realmente: fica a critério do mestre decidir quando eles morrem (claro que jogadas de ataque e testes de resistência ainda devem ser feitas, pois no mínimo os PJ têm que acertar golpes nos monstros);

4- Sendo os minions muito fracos em relação aos PJ, uma boa ideia é fazer com que evitem o combate direto e se foquem em atrapalhar o progresso dos heróis (colocando armadilhas, usando táticas de guerrilha, sabotando coisas que os PJ façam, etc.), sendo o combate direto a última opção deles (ou seja, eles reconhecem sua própria fraqueza, o que seria uma interpretação mais realista);

5 - Use e abuse das "ações de domínio" - coloque os monstros importantes para usar o terreno a seu favor de todas as maneiras possíveis (atirar flechas de um local alto e inacessível, forçar os PJ a passarem por um corredor estreito para que não consigam lutar todos juntos, etc.) Para criar desafios maiores, coloque até mesmo a natureza contra os PJ (faça começar a nevar ou chover nos piores momentos possíveis, por exemplo);

6 - Uma coisa que eu não gostei no D&D nutella são as magias quase "infalíveis" dos personagens arcanos e clérigos que podem ser lançadas até por PJ de níveis baixos. Isso a meu ver inviabiliza alguns pontos-chave de muitas tramas possíveis, caso as regras sejam aplicadas ao pé da letra (por exemplo, magias que obrigam um personagem a dizer sempre a verdade podendo ser lançadas até por magos de níveis baixos inviabilizariam o uso de vilões disfarçados, NPC traidores, etc., ou então magias de proteção "absolutas" que suas regras dizem que "nenhuma magia ou ataque passa por esta barreira" que também podem ser lançadas por magos iniciantes - inviabiliza muitas ações de vilões que usam magia) - na minha opinião, estes efeitos "absolutos" (proteção total, obrigação irresistível de dizer a verdade, etc.) só se aplicariam aos minions (goblins, kobolds, etc.) e no máximo a "capitães de minions" (grandes orcs, chefes goblins, etc.) e teriam grandes chances de falha contra "subchefes" de cenário e praticamente nenhuma (ou nenhuma) chance de funcionar contra chefões finais, vilões muito poderosos, etc. - por exemplo, suponha que em uma aventura um dos pontos chave da trama é que o NPC que está ajudando os PJ é na verdade um demônio disfarçado de humano e também o verdadeiro vilão da história. Qual seria a graça se o jogador com personagem clérigo pudesse lançar uma magia que obriga a dizer a verdade logo na primeira vez em que o grupo encontra este NPC e desde já descobrisse que ele é na verdade um demônio que os está enganando? Isso não tira a graça da aventura? Faz sentido que um demônio que seja alto na hierarquia do inferno seja vulnerável a uma magia de um clérigo de nível baixo? Até admito esta possibilidade em alguns cenários - por exemplo, através de uma grande ajuda da divindade que protege o clérigo em questão ele obtém poderes além de seu nível por um momento e consegue descobrir a verdade, mas isso só em um ponto-chave da história, e não logo no começo e muito menos quando o jogador quiser.
Outro exemplo: um mago de nível 3 lança uma barreira para proteger o grupo contra as magias de um terrível necromante de nível 10 que eles estão enfrentando. Faz sentido que esta barreira segure as magias do necromante? O necromante malvadão simplesmente cruza os braços e diz "pois é, agora esse grupo me enganou, não posso fazer nada!".... Até parece, né? Na minha opinião, uma barreira mágica lançada por uma mago de nível 3 poderia ser impenetrável no máximo para magias de outro mago de nível 3 (mas mesmo assim esse outro mago teria alguma chance de quebrar a barreira, já que eles são do mesmo nível) então o necromante nível 10 do exemplo estilhaçaria a barreira do PJ. Até concordo que haveria uma redução no dano, porque alguma coisa foi gasta para quebrar a barreira, mas dizer que ela seria impenetrável já é exagero. E acho que isso não se aplicaria somente a magias: monstros excepcionais, como dragões anciões, também poderiam quebrar a barreira - óbvio que ela ofereceria alguma resistência, mas não vejo muito sentido em um mago de nível 3, 4 ou 5 conjurando uma bolha mágica que resista eternamente ao fogo ou às patadas de um dragão ancião.

Claro que isso tudo é só a minha opinião. Eu apenas prefiro os jogos mais estilo "sobrevivência" da época do AD&D2e, mas obviamente este sistema também tinha suas falhas, assim como a 5e tem seus méritos. Na terceira parte deste artigo explorarei este assunto.

Bom jogos a todos! Que as brumas não nos alcancem!

sábado, 15 de agosto de 2020

A 5ª edição de D&D - impressões de um jogador "old school" - parte 1

Eu comecei a jogar RPG nos anos 90, em minha infância. No começo, eu só jogava jogos que eu mesmo inventava, com um sistema próprio completamente diferente dos que existem hoje (talvez um dia eu coloque aqui, mas era bem bobo, o trabalho de uma criança de 9 anos). Aos 10 anos, ganhei de dia das crianças o kit First Quest, de AD&D, e o tenho até hoje (exceto algumas miniaturas que quebraram, pois eram frágeis, de plástico). Joguei as 4 aventuras do kit, como mestre e como jogador, e criei várias aventuras baseadas naquelas regras ultra-simplificadas de AD&D, de maneira que nunca vi a importância de um sistema de RPG ter regras tão elaboradas, principalmente no que tange à criação de personagens e resolução de combates. Aquele livro de 16 páginas era para mim um exemplo a ser seguido no que tange a regras oficiais de um sistema de RPG. Descobri anos depois que infelizmente a realidade não é assim, e os livros oficiais de regras são em geral bastante volumosos.

Como RPG no Brasil é um hobby "de nicho", e dificilmente encontrado em livrarias e lojas fora de SP (sou de [REDACTED], e comparado a SP, mesmo o a capital de meu estado parece ser subdesenvolvida em diversos aspectos, e um deles é a variedade de produtos que se encontra à venda em lojas), e em épocas pré-internet (e pré-Mercado Livre) era muito difícil encontrar materiais oficiais de RPG, mesmo em livrarias grandes. Dessa forma, só tive contato com o Livro do Jogador e o Livro do Mestre depois de adulto, comprando pelo Mercado Livre, e fiz questão de comprar os da minha infância, ou seja, os da 2ª edição de AD&D, que são as regras com as quais aprendi a jogar.
Logo percebi que é impossível jogar RPG usando todas as regras do Livro do Jogador e do Livro do Mestre, e entendi que realmente a maioria delas era simplesmente opcional, e deveriam ser usadas conforme o gosto de cada grupo de jogadores.

Na minha opinião, as regras de combate e de criação de personagens têm que ser as mais simples possíveis, de modo a evitar que o RPG se torne um jogo de "jogar dadinho e olhar tabela", porque isso acaba com a mágica do jogo. O foco, na minha opinião, tem que ser sempre o roleplay, o teatro, interpretar personagens e situações fantásticas, e as regras, tabelas e dados serviriam apenas para que sejam tomadas decisões justas e imparciais em momentos chave do jogo, e não para decidir os rumos de cada aspecto das aventuras, porque isso quebra a imersão.

A 5ª edição, a meu ver, me parece que precisou apelar para um público-alvo que teve a imaginação moldada por filmes blockbusters cheios de efeitos especiais, ou seja, uma imaginação super-excitada que não se impressiona muito com detalhes e sutilezas (a não ser na forma de referências mais ou menos óbvias a outros elementos da cultura pop - os famosos easter eggs), e que gosta mesmo é de coisas exageradas e extravagantes. Isso influenciou tudo nos jogos de RPG que são produzidos atualmente, do tipo de aventura oficial que é publicada até a arte dos livros. A coisa que mais me salta os olhos é que no D&D 5e, parece que qualquer PJ de nível 1-2 já é fodão: o personagem guerreiro recém-criado já é um mestre no combate com a alabarda, consegue dar 3 golpes no mesmo turno e sempre tem um bônus de ataque. O personagem ladino sempre começa sua carreira já sendo um mestre em se esconder de maneira perfeita e indetectável (mesmo que não haja onde se esconder no cenário), e se bobear seu equipamento inicial inclui um manto da invisibilidade ou botas élficas que o permitam andar em completo silêncio. Para mim, essas coisas tiram um pouco da graça. Gosto de personagens que começam "comuns", como pessoas normais, não muito fortes, ainda aprendendo a lutar, e que vão progredindo de aventura em aventura, até se tornarem, após muita experiência, verdadeiros heróis lendários. Os jogadores mais novos, por outro lado, parecem gostar de criar personagens já no nível 20, parece que ninguém gosta de criar PJ "normais", que realmente sigam "o caminho do herói" - lutar, perder, superar dificuldades, melhorar, vencer. 
De certa forma, está mais ou menos claro (li em algum lugar que agora não me recordo) que a 5ª edição foi feita para jogar jogos ditos "épicos" - aventuras em que cada PJ é "fodão" e é capaz de matar vários inimigos com um só golpe, lança magias infalíveis, sempre tem um bônus de ataque ou resistência, geralmente tem ataques extras por turno, facilidade em fazer combos, etc. Pela minha experiência com a 5ª edição (algumas partidas) digo sinceramente que jogos "épicos" não são para mim. 
Eu preferia o tom mais no estilo "sobrevivência" da 2ª edição, com muito mais dificuldades e personagens mais "pé no chão" dentro de um mundo de fantasia. Mas, feliz ou infelizmente, tenho que aceitar jogar a 5ª edição para conseguir jogar alguma coisa de RPG hoje em dia.

Em suma, eu prefiro RPGs em que os PJ têm que realmente "suar a camisa" para sobreviver em uma aventura, e esse não é o caso da 5ª edição de D&D. 

Na próxima parte deste artigo, colocarei sugestões para mestres que compartilhem de minha opinião a respeito desta edição "nutella" de D&D para tentar dar um pouco mais de dificuldade às aventuras.