sábado, 26 de fevereiro de 2022

O dinheiro nos mundos de RPG

Um detalhe que geralmente não é percebido pelos mestres de jogo e pelos autores de aventuras é a questão do dinheiro. Às vezes ele parece que não serve para nada no jogo, ao mesmo tempo que "serve" (no sentido de talvez impedir o acesso dos jogadores a algum item importante no começo de uma aventura - isso, é claro, supondo que um item realmente importante esteja à venda, o que acredito que não seja algo tão comum assim!), ou como recompensa por alguma missão, ou para que os jogadores usem para subornar um guarda de um portão de uma cidade ou fortaleza. 

Mas o que eu já observei é que geralmente não há um padrão. 

Já vi aventuras em que uma moeda de ouro é muito, e outras em que uma moeda de ouro é "troco". 

Tem aventuras em que só existem moedas de ouro; tem outras em que existem também as de prata e as de cobre. 

Tem outras ainda mais detalhadas em que colocam moedas de platina. 

E tem outras com muito mais detalhes em que colocam até mesmo moedas de electrum (liga de ouro e prata usada pelos antigos gregos).

Na real, isso nem importa muito, o que importa é o mestre e os jogadores se divertirem, então realmente não é necessário ser rigoroso quanto à questão do dinheiro. 

Uma bela coleção de moedas do mundo real. Recomendo o hobby!


Eu vejo isso mais como uma questão de capricho do mestre do jogo ou do autor da aventura, uma questão de gosto pessoal, valorizada por mestres e autores que gostem e tenham interesse pelas áreas de História e Economia (como é o meu caso). 

Mas, obviamente, isso praticamente só é valorizado (se for valorizado at all) pelo mestre ou pelo autor da aventura. Os jogadores, óbvio, só querem saber de matar monstros, upar, interpretar cenas épicas, interpretar brigas de taverna, enganar guardas para entrar em cidades ou castelos de entrada proibida, e por aí vai. 

Mesmo assim, julgo importante que, independente do nível de detalhes da economia dentro de uma aventura ou campanha de RPG, haja um padrão, uma lógica, uma consistência no preço das coisas, para evitar distorções bizarras que podem ser facilmente notadas pelos jogadores - por exemplo, imagine que um ferreiro cobre 10 moedas de ouro por uma espada longa, e na mesma cidade uma noite na hospedaria local custe também 10 moedas de ouro. E na cidade vizinha uma faca custa 20 moedas de ouro. Isso geralmente acontece quando os preços das coisas são decididos na hora pelo mestre, sem planejamento prévio. 

Em termos práticos isso muda de fato alguma coisa? Não. Mas os jogadores podem perceber que não há um padrão e isso pode quebrar um pouco a imersão no jogo e provocar distorções no modo como eles enxergam os tesouros que encontrarem e as recompensas que receberem por seus feitos.

Por exemplo: os heróis entram na oficina de um ferreiro para comprar armas novas. Quanto o ferreiro vai cobrar por uma espada? Uma espada longa é mais barata que uma espada de duas mãos? Um machado é mais barato ou é mais caro que um martelo de guerra? E um arco? Quanto custa um arco? A recompensa que o prefeito está oferecendo ao grupo será suficiente para eles renovarem seu equipamento, curarem os ferimentos após as batalhas e etc.?

Vou compartilhar aqui como eu faço para escolher os preços das coisas nas aventuras que escrevo. Não é nada "do outro mundo", mas cumpre seu propósito de criar um padrão:

Primeiro, eu gosto da ideia de usar somente três tipos de moedas: cobre, prata e ouro. E gosto de quantidades pequenas e "redondas" para fazer a conversão de uma moeda para outra. Geralmente eu estabeleço que uma moeda de ouro vale 20 moedas de prata e que uma moeda de prata vale 50 moedas de cobre. Assim, uma moeda de ouro valeria mil moedas de cobre.

Então resumindo o câmbio:

1 ouro = 20 pratas = 1.000 cobres

1 prata = 50 cobres

Segundo: eu não faço uma ideia muito detalhada dos preços das coisas na Europa medieval, mas graças às minhas leituras sei que 1 pão custava uma moeda de cobre (isso na França, no reinado de São Luís, o qual mandou cunhar essas moedas de cobre que ficaram conhecidas como "denário da esmola"). 

Como o cobre é, digamos, o mais básico dos metais usados para fabricar moedas (é encontrado na natureza em certa abundância e é fácil de ser trabalhado), então acho razoável, para fins recreativos, assumir que em praticamente qualquer lugar na Europa medieval um pãozinho custasse uma moeda de cobre, considerando que o pão fosse o produto mais barato de qualquer reino em tempos normais (óbvio que durante guerras e pestes ele ficaria muito mais caro, mas vamos simplificar as coisas).

Interior de uma típica taverna de RPG (créditos ao autor, creio que seja de um dos livros da Fighting Fantasy) - Disclaimer: if the owner of this image ever feels offended that I've posted it in my humble blog from which I get zero profit, then I am sorry. That's it.

Assim, partindo desta base, pensando em alimentos e bebidas, creio que uma tabela razoável de preços para uma taverna estilo "pé-sujo" de uma cidade pequena numa aventura de RPG seriam os seguintes:


Pão - 1 moeda de cobre;

Legumes "crus" - 1 moeda de cobre;

Refeição básica (pedaço de carne com batatas ou só as batatas, dependendo das condições do local) - 5 moedas de cobre;

Cerveja barata - 3 moedas de cobre;

Vinho barato - 4 moedas de cobre;

Hospedagem - diária de 8 moedas de cobre por pessoa


Estes são os valores básicos para uma cidade pequena numa taverna pé-sujo. Em cidades maiores e mais importantes, com tavernas e hospedarias melhores, os preços serão obviamente maiores. Talvez os personagens dos jogadores tenham que pagar em moedas de prata e até mesmo de ouro para bancar a hospedagem em uma capital importante. Pode ser que locais com cerveja de qualidade superior cobrem, digamos, 30 moedas de cobre (ou mais) por caneco. Essa estimativa me parece razoável!


E quanto às armas? Aqui eu acho que fica um pouco mais difícil pensar em preços justos, mas partindo de um raciocínio análogo ao do pão, considerando que uma faca de caça seja a arma mais básica feita por um ferreiro, creio que os preços seriam os seguintes (considerando um ferreiro de cidade pequena):

Faca de Caçador - 40 moedas de cobre (penso que um ferreiro antigo pudesse demorar um dia inteiro para fazer uma boa faca de caça, pois ele tem que acender a forja, esperar esquentar, pegar o ferro bruto (ou o bronze), martelar até ficar do tamanho e espessura certas, e depois afiar, lixar, fazer um cabo... se hoje em dia com maçaricos a gás e martelos hidráulicos ainda é difícil e demorado fazer uma faca artesanalmente, imaginem naquela época! Sendo assim, o preço da faca deveria cobrir no mínimo 2 refeições do ferreiro e ainda o salário de um ajudante ou aprendiz e dar lucro!)

Machadinha de arremesso - 1 moeda de prata

Feixe de 24 flechas - 2 moedas de prata (as pontas não eram difíceis de fazer, mas o processo de fabricação de uma flecha era complexo, pois uma flecha é feita de várias partes e precisava ser muito bem feita para que voasse em linha reta)

Lança - 3 moedas de prata

Maça ou Maça Estrela - 4 moedas de prata

Pique - 5 moedas de prata (fabricação mais complexa que a da lança)

Alabarda - 10 moedas de prata (fabricação mais complexa que a da lança)

Espada Curta - 5 moedas de prata

Espada Longa - 10 moedas de prata

Espada de duas mãos - 15 moedas de prata

Machado de batalha - 10 moedas de prata

A lógica aqui é a seguinte: quanto mais complexa a fabricação e quanto mais material for necessário, mais tempo o ferreiro irá gastar e portanto o preço precisará ser maior.

Estes são os preços básicos, passíveis de serem cobrados por um ferreiro de uma cidade pequena, creio eu. Em cidades mais populosas e mais importantes talvez haja ferreiros mais famosos e experientes e que por isso cobrem mais caro (pois suas armas seriam de melhor qualidade). Além disso, quaisquer coisas extras que os personagens queiram adicionar às armas (entalhes, jóias, banhos a ouro, gravações no metal, adornos em geral) aumentariam os preços e provavelmente não seriam possíveis de ser feitos por ferreiros de cidades pequenas.

A mesma lógica se aplicará aos carpinteiros (que fabricarão cajados,  bordões e escudos de madeira), aos fabricantes de arcos (um longbow deveria ser teoricamente o arco mais caro), coureiros (que farão algibeiras, corseletes de couro, escudos, etc) e aos fabricantes de armaduras.

Em relação ao preço de outras coisas o preço razoável fica ainda mais nebuloso, ainda mais se colocarmos a magia nesta equação (como precificar uma espada mágica? Ou uma poção de cura?) Eu sou da opinião de que itens mágicos, caso estejam à venda, devem sempre ser muito mais caros do que os seus equivalentes não-mágicos, de modo que não seja fácil comprá-los (e na maioria dos casos não faz muito sentido ter essas coisas à venda, exceto talvez poções de cura e remédios mágicos em geral). E acho também que qualquer item mágico deve ter seu preço sempre em moedas de ouro, considerando que existem as de prata e as de cobre.

Então se uma espada longa normal feita por um ferreiro de uma cidade pequena custasse 10 moedas de prata, uma espada longa + 1 custaria pelo menos 5 moedas de ouro. Uma espada longa +4 deveria custar umas 20 moedas de ouro, e por aí vai. Mesmo uma poção de cura deveria custar ao menos 1 moeda de ouro, para ilustrar o fato de que provavelmente elas não são fáceis de fazer e também para dificultar o jogo.

Assim, criando-se um padrão de comportamento dos preços das coisas em uma aventura, pode-se estabelecer recompensas mais realistas e valiosas para os jogadores. 

Afinal, se os preços das coisas forem aleatórios dentro do mundo do jogo, como que os jogadores vão saber se a recompensa de 500 moedas de ouro oferecida pelo burgomestre para quem matar o dragão que está aterrorizando os fazendeiros nos arredores da cidade realmente vale a pena? Dependendo de como as coisas estão precificadas, 500 moedas de ouro podem ser uma quantia colossal que permitirá aos heróis se aposentarem, comprarem terras e construírem castelos, ou pode ser muito pouco, de modo que os jogadores terão que negociar uma recompensa mais adequada.

Este é, ao menos, um pequeno benefício do autor da aventura levar mais a sério a questão do dinheiro e dos preços no mundo de fantasia que está criando.

Outra coisa que eu percebi como mestre é a seguinte: até que ponto o dinheiro  serve como recompensa que motive os jogadores (vejam bem, eu disse os jogadores, e não os personagens) a aceitarem missões perigosas ou, principalmente, ajudarem NPCs que acabaram de conhecer?

Acho que todo mestre já se deparou com um grupo em que os jogadores gostam de testar a paciência do mestre e fazem "jogo duro" para que seus personagens aceitem as missões. Praticamente nenhuma recompensa motiva esse tipo de jogador a cooperar mais com o mestre e ajudar a história a fluir. Se os jogadores sentirem dificuldade para comprar itens, armas, remédios, etc. por conta de seus preços, talvez se motivem mais a fazer com que seus personagens aceitem missões no jogo em troca de dinheiro.

Por fim, acho interessante dar nome ao dinheiro, para não ficar dizendo simplesmente "moedas de ouro", "moedas de prata", etc. Para isso, eu gosto de usar nomes de moedas antigas do mundo real ou inventar nomes para as moedas dos reinos de fantasia (e estes nomes inventados quase invariavelmente são baseados em nomes de moedas que existiram no mundo real, assim como praticamente tudo na fantasia).

Segue uma lista com bons nomes para moedas (entre parênteses o país do mundo real que usava estas moedas, conforme o caso):

Dracmas (Grécia)

Marcos (Alemanha)

Francos (França)

Thalers (Alemanha) - curiosidade: foi da palavra Thaler que surgiu o nome do Dólar

Escudos (Portugal)

Coroas (Suécia, Noruega, Islândia, Dinamarca)

Aureum (moeda de ouro do Império Romano)

Soldo (moeda de prata do Império Romano)

Sestércio (moeda de cobre do Império Romano)

Gros ou Groat ou Groschen (moeda de prata de diversos países da Europa medieval)

Soberano (moeda de ouro da Inglaterra)

Florim (moeda de ouro usada em diversos países europeus na idade média, principalmente nas cidades-Estado italianas)

Denário ou Dinar (moeda de ouro usada pelos árabes na idade média - muito provavelmente a palavra Denário deu origem à palavra "dinheiro")

Dirham (moeda de prata usada pelos árabes medievais)

Fuls (moeda de cobre usada pelos árabes medievais)

Ducado (moeda de prata usada em diversos países europeus na idade média)

Dracmas do mundo real



2 comentários:

  1. Normalmente nas minhas sessões eu adoto a seguinte Proporção:
    1 Moeda Ouro = 10 Moedas Prata = 100 Moedas de Cobre.
    (Sei, é bem simplório, mas já ajuda um pouco na proporção)

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    1. valeu pelo comentário, LordDrâckul!
      Qualquer proporção é boa, contanto que funcione! Veja que a minha também é simplória (1 ouro = 20 pratas = 1.000 cobres). O que importa é funcionar!
      Abraços e volte sempre!

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