Acho que toda empresa ligadas às artes em geral, especialmente literatura e cinema, precisa estar sempre lançando novos produtos, e produtos bastante variados, para manter seu lugar ao sol. No caso das empresas do mercado de RPG, creio que a saudosa TSR (sucedida pela atual "Weaks of the Coast", ou como os colegas de blogosfera RPGzística já estão chamando, "Warlocks of the Coast") foi a que chegou mais longe em termos de diversificação. Além dos diversos cenários de RPG (Greyhawk, Forgotten Realms, Mystara, Birthright, Dark Sun, Dragonlance e, é claro, Ravenloft), a empresa também lançou livros de literatura fantástica baseados nos mundos de seus cenários de RPG. Acho que todo cenário teve pelo menos uma série de livros de fantasia baseados neles (exceto, talvez, Mystara, mas não tenho certeza quanto a isto).
Claro que tais livros foram escritos puramente para fins comerciais ("cash-grab" é o que me vem à mente), embora sempre possa haver a justificativa de servirem como materiais auxiliares aos Mestres de jogos (para auxiliá-los na imersão, para detalhar mais os mundos e seus personagens, etc.), e tais livros de fato serviram a este propósito (e acho que ainda servem, pelo menos para os jogadores que mantém acesa a chama do old school). Claro que não se poderia esperar encontrar Alta Literatura neste âmbito, mas obviamente há livros bons a serem encontrados e lidos.
Ravenloft teve uma tiragem razoável de romances ambientados no semiplano do pavor: de 1991 a 1999 foram publicados 20 livros. Atualmente alguns foram reeditados e podem ser encontrados à venda até mesmo para o kindle (porém com capas com artes new school, bastante inferiores às originais). Os que não tiveram reedições se tornaram peças raras, e são encontrados à venda no e-bay por preços salgados, e raramente são vistos no Mercado Livre, mas por preços exorbitantes ("Trato Feito" e outros programas semelhantes foram um desastre para os colecionadores brasileiros...).
Recentemente li um destes livros e resolvi escrever esta breve resenha.
"I, Strahd - The Memoirs of a Vampire" é um livro publicado em 1993 (30 anos atrás!) escrito por P.N. Elrod (autora de diversos livros de vampiro nos anos 90), majoritariamente em primeira pessoa, na forma do diário pessoal do Conde Strahd von Zarovich, o principal personagem de Ravenloft. O propósito do livro foi dar mais luz ao passado do terrível vampiro e com isso proporcionar um background mais complexo tanto para o personagem quanto para a terra de Baróvia, o primeiro domínio de Ravenloft.~
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A história começa com o Dr. Rudolph van Richten, um herói recorrente nas aventuras situadas no semiplano do pavor, invadindo o castelo de Ravenloft para tentar descobrir mais informações a respeito do terrível Conde Strahd, o qual estava desaparecido há quinze anos. O velho herbalista suspeitava que o senhor de Baróvia fosse uma criatura sobrenatural e sobre-humana, mas não tinha certeza sobre que tipo de criatura ele poderia ser. Também não se sentia confortável utilizando somente as informações disponíveis nos contos folclóricos do povo baroviano para tentar descobrir uma fraqueza ou alguma outra maneira de maneira de vencer o Conde. Desta forma, deu um jeito de invadir o infame castelo para tentar reunir informações de primeira mão a respeito da natureza do senhor de Baróvia. Adentrando a biblioteca, ele encontra um livro que havia sido deixado sobre a mesa, e ao lê-lo, vê que tratava-se do diário do próprio Conde Strahd.
A partir deste ponto, lemos a história em primeira pessoa, sob a perspectiva do vampiro.
O diário começa alguns anos antes de sua transformação. Strahd era um conquistador, de uma linhagem nobre, que já estava lutando há muitos anos uma guerra para reconquistar a terra de seus ancestrais - Baróvia - a qual havia sido tomada por uma nação inimiga. A guerra já estava no fim, e o exército de Strahd já havia derrotado o líder de seus inimigos e se apossado de sua última fortaleza (a qual viria não muito depois a se tornar o castelo Ravenloft).
Vemos desde já que, mesmo quando ainda era humano, Strahd já era um governante impiedoso: protegia militarmente seus súditos (como era a obrigação dos senhores feudais e reis na vida real), mas não tolerava aqueles que ousavam quebrar sua lei, sendo especialmente rigoroso quanto à cobrança de impostos - há uma cena em que ele vai pessoalmente com seu Estado-Maior em uma das cidades barovianas para coletar os impostos, e seu auditor analisa os registros e informa que estava faltando dinheiro, mesmo levando em conta a colheita ruim do ano anterior. O burgomestre titubeia e gagueja, e Strahd percebe que ele está vestido em roupas extremamente luxuosas, e que sua casa era um verdadeiro palacete diante das cabanas humildes do resto do povo daquela cidade. O Conde ordena então que o burgomestre tire suas roupas luxuosas, deixando-o só de ceroulas, e manda seus oficiais entrarem em sua casa e recolherem o que havia de valor para compensar o valor que faltava de imposto. Por fim, após esta humilhação pública, o burgomestre é decapitado para servir de exemplo.
Outra característica explorada no livro (e que contribui para um ponto chave da história) é o grande interesse de Strahd por magia. O Conde dedica parte de seu tempo, entre os afazeres governamentais, a procurar livros de magia e estudá-los. Porém, como não dispõe de tanto tempo assim, é um mago sub-mediano, conhecendo uns poucos feitiços (porém o suficiente para impressionar seus companheiros de batalha, os quais são completamente ignorantes no assunto).
Um belo dia, Strahd recebe em seu castelo seu irmão mais novo, Sergei von Zarovich, o qual estava destinado a ser um sacerdote (conforme o costume daquele mundo, o irmão do meio, Sturm von Zarovich, virou administrador das propriedades do pai. O filho mais velho, Strahd, seguiu a carreira militar, e o mais novo se tornaria um sacerdote).
Devido à diferença de idade, Strahd sente um vago ressentimento, pois percebe que perdeu sua juventude envolvido em guerras quase sem fim (neste ponto da história ele está na casa dos quarenta e poucos anos de idade), enquanto seu irmão mais novo estava na flor da idade (Sergei estava na casa dos vinte e poucos anos), com toda a vida pela frente e ainda com toda a força de sua juventude. Strahd começa a temer a chegada da velhice e a própria mortalidade. Isso também vai se tornar um ponto de extrema importância para a história.
Após passar uma noite em uma pequena cidade próxima do castelo, Sergei conhece uma bela camponesa e se apaixona por ela, abandonando seus votos do sacerdócio e decidindo imediatamente casar-se com ela. Strahd acha aquilo um absurdo, um escândalo que traria desonra para sua família (afinal, não só Sergei abandonou seus votos religiosos, como também estava prestes a se unir com uma reles camponesa), até o dia em que Sergei traz sua amada ao castelo. Naquele dia, o coração de Strahd é fisgado pela belíssima Tatyana, e isso lhe causa grande tormento, pois a camponesa só tinha olhos para seu irmão, e tratava o Conde como alguém velho demais para despertar qualquer interesse amoroso (inclusive chamando-o, respeitosamente, por alcunhas como "mestre", "senhor", "patriarca", etc.). O casamento dos dois seria em breve, e isso atormentava sobremaneira o coração do Conde.
Eventualmente, a paixão de Strahd por Tatyana supera seu amor fraterno por Sergei, e o Conde começa a procurar por meios mágicos de conseguir roubar o coração da bela camponesa. O destino põe em suas mãos um livro macabro, através do qual os desejos sombrios em seu coração invocam uma entidade sobrenatural que lhe garante conseguir conceder o seu desejo. Strahd pede à entidade (a qual ele chama de "Morte", embora a entidade em nenhum momento revele seu nome) para torná-lo imortal, imune à velhice, e que lhe concedesse o amor de Tatyana; a entidade lhe promete que ele não envelheceria mais um dia sequer e que teria o coração da camponesa se cumprisse o ritual. Qual ritual, ela não diz, mas garante ao Conde que não é nada que esteja fora de seu alcance.
Acontece que o principal general do exército (e braço-direito) de Strahd, Alek, ouviu a conversa de seu senhor com a entidade sobrenatural. Strahd percebeu isso, e não teve outra escolha a não ser matar seu general, temendo que o mesmo revelasse aos outros nobres seu pacto com a Morte. Um rápido duelo acontece, e ambos são mortalmente feridos. Strahd ouve a voz da Morte lhe dizendo para beber o sangue de Alek, e ele obedece. A partir daí começa sua transformação em um vampiro. Consumindo o sangue de seu general, Strahd se recupera de seus ferimentos mortais e entende que aquilo fazia parte do ritual. Em seguida, no dia do casamento, ele mata seu próprio irmão Sergei quando os dois estão sozinhos, e também bebe seu sangue, completando sua transformação em vampiro. O Conde percebe sua transformação, mas ainda não a compreende completamente.
Não demora muito para o corpo de Sergei ser descoberto, provocando um grande escândalo entre os guardas, mas Strahd conseguiu fazer com que parecesse um assassinato político (e já planejava colocar a culpa em um dos nobres). Aproveitou a ocasião para dar as más notícias a sua amada Tatyana, e usaria a oportunidade para seduzi-la. Com seus poderes vampíricos, consegue hipnotizá-la e fazê-la apaixonar-se por ele.
Foi neste momento que as Névoas retiraram Baróvia do mundo natural e a selaram no semiplano do pavor.
Tudo estava indo conforme o desejo de Strahd. Ele já tinha a vida eterna e o coração da mulher amada. Sua vitória parecia completa. Porém, o amor que Tatyana sentia por Sergei era muito mais forte, e seu "amor" pelo Conde Strahd não durou mais do que alguns minutos. Desesperada, Tatyana se joga no abismo, desaparecendo em meio à névoa.
Ao mesmo tempo, um complô para destronar Strahd, conduzido por Leo Dilisnya, um traidor na corte, começa a ocorrer. Os convidados do casamento que eram leais à família von Zarovich morreram envenenados, e as tropas de Dilisnya tomaram de assalto o castelo, matando muitos dos soldados leais a Strahd. O Conde, agora um vampiro, estava tão perturbado com o suicídio de sua amada que demorou a reagir. Porém sua reação foi mortífera. Organizou os poucos homens que lhe restaram e usou seus novos poderes para sobrepujar os invasores. Perseguiu os traidores, mas não conseguiu nesta ocasião matar seu líder, Leo Dilisnya.
Após isto, o diário relata a adaptação de Strahd a sua nova "não vida" vampírica, as adaptações que precisou fazer em seu castelo, a liberação de seus soldados de seu serviço (ele não queria se alimentar de seus velhos companheiros de guerra), e principalmente sua busca incessante pelo corpo de Tatyana, o qual nunca foi encontrado. O diário também revela que Strahd sabe que é um prisioneiro em sua própria terra, e que as Névoas não lhe permitem sair.
Mesmo sendo um vampiro e governando seu povo à distância (pois se se entregasse à sua fome, não demoraria muito para que não sobrasse ninguém em Baróvia), Strahd não deixou de aplicar rigorosamente sua lei e nem de cobrar impostos. Ele ainda precisava de dinheiro para, principalmente, adquirir livros de magia. Agora como um imortal, ele teria bastante tempo para estudar e adquirir conhecimentos mágicos que um dia lhe permitiriam, talvez, escapar de sua prisão.
Outro aspecto importante de seu tormento, do qual Strahd adquire ciência conforme os eventos vão se desenrolando: em sua vida eterna ele está amaldiçoado a sempre encontrar uma reencarnação de Tatyana e perdê-la novamente, e sempre de uma maneira trágica e repentina. Assim, outra motivação para encontrar uma saída de Ravenloft é poder libertar sua amada Tatyana deste ciclo aparentemente infindável de tragédias.
=~=~=~=~=~=~=~=FIM DOS SPOILERS~=~=~=~=~=~=~=~=
Enfim, conforme escrevi antes, esse livro não é nenhuma obra-prima, mas é um livro interessante e divertido, que serve para distrair e nos inspirar a escrever aventuras de RPG ambientadas em Baróvia ou em qualquer cenário com uma abordagem mais gótica.
Os tropos góticos que vemos neste livro:
- a decadência e corrupção moral de Strahd, motivada pelo medo da própria mortalidade e da velhice, o que o conduziu ao fratricídio;
- o castelo Ravenloft, que se tornou o típico castelo gótico após a transformação de Strahd em vampiro (embora não haja uma boa descrição do castelo, fica subentendido que ele se tornou um verdadeiro castelo do terror, com masmorras, guardas mortos-vivos, etc.);
- a própria transformação de Strahd em vampiro, com todos os elementos comuns: habilidade de se transformar em morcego e em lobo, a necessidade de se alimentar de sangue de criaturas vivas, a fraqueza contra a luz do sol e contra símbolos sagrados, a fraqueza contra a fé, etc.
- A existência de uma maldição, não só sobre o personagem principal, mas sobre toda a terra, em decorrência dos atos malignos de Strahd.
Mas, apesar de tudo, não considero que este seja realmente um exemplo de literatura gótica: está mais para um livro de fantasia com alguns elementos góticos, assim como a maior parte do que foi escrito para Ravenloft.