quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Literatura Medieval - A saga de Hen Thorir

 Aconcheguem-se perto da fogueira, meus amigos, o bardo vai contar mais uma história.

Hoje será contada a Saga de Hen Thorir, um personagem singular das sagas islandesas. Esta foi a primeira saga que li (no livro "Eirik the Red and other Icelandic Sagas"). 

Trata-se de um relato de acontecimentos nas vidas de pessoas comuns, e é justamente isto que a torna tão interessante aos meus olhos, pois mostra um pouco de como era a vida naquela época...


Um pequeno mapa da região de Borgafjord, onde se passa esta saga

Segue um resumo (bem resumido!) desta interessante história (e vocês verão como que, embora algumas sagas sejam curtas, muitas com menos de 50 páginas, são textos bastante densos, pois quase não há descrições das coisas... como eu já escrevi aqui antes, este é um gênero literário bastante direto ao ponto, com fatos atrás de fatos, quase ininterruptamente, o que contribui para a densidade de tais obras).

Esta saga (e muitas outras) pode ser lida na íntegra neste site, em inglês, alemão e islandês:  https://sagadb.org/haensna-thoris_saga.en

Quem quiser ler a saga por conta própria, pare de ler o post a partir daqui e volte somente na parte onde teço meus comentários.


A saga começa falando sobre o personagem-título, Hen Thorir ("Hen" vem de galinha mesmo) - considerando que "Thorir" era (é?) um nome bastante comum entre os escandinavos (ao menos o radical "Thor" parece ser comum nos nomes), ouso dizer que se esta história se passasse em algum país lusófono, seu apelido provavelmente seria algo como "Zé Galinha"!

Thorir era um mercador que ficou célebre por ter vendido galinhas em determinada época (daí seu apelido "Hen") e não era um homem bem quisto por seus pares na Islândia  - fica subentendido que era por conta de sua avareza e ganância (e talvez porque ele fosse um negociador "jogo duro"). 

Acontece que Thorir obteve sucesso em seus negócios, se tornando um rico fazendeiro, e credor de vários homens importantes nas redondezas. Ele faz um acordo com Arngrim, um chefe local de relativa importância: em troca de Thorir criar e cuidar de seu filho (e deixar -lhe metade de sua fortuna como herança), Arngrim deveria apoiar Thorir em todos os assuntos legais, sempre que este fosse exigir seus direitos, cobrar dívidas, etc.

Em uma fazenda vizinha à de Thorir, o senhor das terras, Blund-Ketil (o qual, convém dizer, era muito rico e muito bem quisto por seus pares naquela época), instrui seus servos para que sacrificassem alguns animais do rebanho para que economizassem  palha, pois o inverno se aproximava e seria bastante rigoroso. Os servos o desobedeceram (ou esqueceram suas ordens) e a palha daquela fazenda praticamente acabou às portas do inverno. Blund-Ketil precisou então cavalgar até a fazenda de Hen Thorir, e lhe pediu para comprar um pouco de sua palha (era sabido nas redondezas que Thorir possuía um armazém cheio). 

Thorir, por pura má vontade, se recusou a vender, alegando não precisar de dinheiro. Blund-Ketil ofereceu pagar o dobro do preço justo, alegando que seus animais morreriam de fome no inverno e isso seria um desastre para sua fazenda. Thorir permaneceu incólume, totalmente insensível aos apelos do vizinho. Foram-lhe oferecidas outras coisas (mercadorias, ferramentas, e até uma parte da produção de palha do ano seguinte das fazendas de Blund-Ketil), e Hen Thorir não mudou de ideia em momento algum.

Blund-Ketil, sem opção, resolveu que iria pegar a palha à força, pois do contrário seus animais morreriam e sua família passaria fome no inverno. Adentrou o armazém de Thorir com seus homens, recolheu a palha que precisava e deixou o dinheiro do pagamento no local. 

Hen Thorir ficou furioso, e tentou convencer alguns de seus conhecidos de que havia sido roubado. Porém, mesmo aqueles que tinham algo contra Blund-Ketil não quiseram tomar o partido de Hen-Thorir (ele era mesmo mal visto entre os homens da época, enquanto que Blund-Ketil era honrado e muito bem quisto). 

Eventualmente Thorir consegue o apoio de Thorvald Oddson, filho de Odd Onundarson (também conhecido como Tungu-Odd, este homem era uma espécie de "autoridade portuária" e tinha uma pequena rixa com Blund-Ketil) em troca de metade de sua fortuna. O tempo inteiro, Arngrim, "aliado" de Hen Thorir, tenta convencê-los a não levar aquela vingança adiante, mas seus conselhos caem em ouvidos moucos (aqui cabe relembrar: Arngrim era um chefe local que havia feito uma aliança política com Hen Thorir: ele receberia metade da fortuna do comerciante e seu filho seria criado por ele, e em troca Arngrim teria que defender os interesses de Hen Thorir perante os outros homens sempre que este precisasse)

Thorvald e Thorir reúnem um grupo de 30 homens e vão até a fazenda de Blund-Ketil par.a acusá-lo de roubo e formalizar que irão submetê-lo à assembleia geral ("Althing") para que o mesmo fosse julgado. Ketil diz que não fez nada de errado, e novamente oferece pagar mais do que o preço justo pela palha. Thorvald fica inclinado a aceitar a oferta, mas Thorir exige que eles continuem em frente com a acusação.  Thorvald então usa palavras bem duras para acusar Blund-Ketil de ter roubado a palha de Thorir, o que muito ofende o fazendeiro. 

Acontece que hospedado na casa de Blund-Ketil estava Orn, um mercador norueguês (que havia sido vítima da má vontade de Tungu-Odd, o qual proibiu que os mercadores do porto de Borgafjord fizessem comércio com Orn), o qual resolve tomar as dores do fazendeiro. Ele saca um arco e dispara, matando um dos homens do bando de Hen Thorir. Ele matou ninguém menos que Helgi , o filho de Arngrim que estava sendo criado por Thorir. 

Hen Thorir aproveita a situação e mente dizendo que as últimas palavras do garoto foram de que ele desejava que a fazenda e a família de Blund-Ketil fossem queimadas, como vingança. Assim, naquela mesma noite, o bando volta à propriedade de Blund-Ketil e ateia fogo à casa e às plantações, matando a todos, inclusive o velho e bem quisto fazendeiro.

O filho de Blund-Ketil, Herstein Ketilson, fica sabendo do ocorrido, e junto de seu "pai adotivo" Thorbjorn começam a recrutar a ajuda de outros fazendeiros e senhores de terras locais para executar a vingança contra Hen Thorir. O primeiro a ser chamado é, ironicamente, Tungu-Odd (pois Thorbjorn tinha boas relações com o mesmo), o qual se aproveita para tomar posse das terras de Blund-Ketil (como vingança pelo bom fazendeiro ter ajudado Orn, o mercador norueguês). 

Eventualmente, Herstein e Thorbjorn conseguem aliados usando um interessante estratagema: Thorbjorn visita Gunnar Hlifarson, outro senhor de terras, e alega que Herstein estava muito ansioso para se casar com sua filha, Thurid, e que seria um excelente negócio aceitar aquela proposta, pois ambas as famílias se beneficiariam. 

Um pouco hesitoso, Gunnar aceita a ideia e se compromete a permitir que Herstein se case com Thurid. Neste momento é-lhe revelado que o pai de Herstein havia sido queimado até a morte pelo bando de Hen Thorir, e Gunnar percebe que foi feito de trouxa, pois agora que havia prometido sua filha em casamento, estava legal e moralmente obrigado a ajudar Herstein em sua vingança (dívida de honra) - Gunnar lamenta ter aceitado tão rápido a proposta e se sente tendo sido feito de idiota, mas já era tarde para voltar atrás. 

Assim, no dia seguinte, a comitiva vai até as terras de Thord Bellow, pai adotivo de Thurid, para pedir sua permissão e sua bênção para que o casamento ocorra. Thord é enganado da mesma maneira que Gunnar, aceitando que o casamento ocorresse o mais rapidamente possível, e com a cerimônia sendo celebrada em sua fazenda. Com isso, Thord Bellow também é legal e moralmente envolvido na vingança pela morte de Blund Ketil (e também se lamenta de ter concordado tão apressadamente com o casamento).

No casamento, os personagens principais fazem juramentos de vingança contra Hen Thorir e seus aliados (inclusive contra Arngrim). Thorir fica sabendo do ocorrido, e fica foragido.

Todos os envolvidos na vingança  juntam um pequeno exército de homens (por volta de 240) e partem à procura de Hen Thorir. Os demais envolvidos na morte de Blund-Ketil (Odd e Arngrim) também juntam um exército (cerca de 480 homens). Os grupos rivais se encontram e uma pequena batalha é travada, com alguns mortos e muitos feridos. 

Hen Thorir, posteriormente, tenta emboscar Herstein, pagando a um camponês para que inventasse uma desculpa para levá-lo até o meio de um bosque (onde Thorir e seus homens estariam esperando). Porém, Herstein enxerga, de longe, o brilho de um escudo no meio das árvores e percebe o engodo. Dá meia-volta, reúne um grande número de homens e volta para o bosque, onde trava uma curta batalha contra o bando de Hen Thorir, decapitando-o e matando seu bando.

Posteriormente, na Assembleia Nacional (Althing), Herstein chega, triunfante, carregando a cabeça de Hen Thorir. No mesmo dia, Arngrim é declarado fora-da-lei, e Odd é sentenciado  ao exílio.

(e a saga continua contando os destinos dos filhos dos principais personagens)

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Foto de um raro exemplar de um livro publicado pela Byway Press USA em 1903, contendo esta saga. Notem as belas ilustrações nas margens. Um pequeno tesouro literário 

Após este "breve resumo", seguem as minhas anotações:

Embora eu acredite que alguns pontos da história possam ter sido, de certa forma, exagerados, acho que podemos dizer que se trata de um registro autêntico dos costumes, leis e modo de vida dos primeiros islandeses. Vejamos:

- A assembleia-geral islandesa (Althing) atuava como poder legislativo e poder judiciário, fazendo leis e julgando processos e dando sentenças condenatórias. Não creio que funcionasse perfeitamente, mas afinal qual sistema de governo funciona com perfeição?

- Pelo visto havia o costume de dar um filho para que outro parente (ou outro chefe de clã) criasse, para forjar alianças políticas. É o caso do filho de Arngrim, que é criado por Thorir em troca de proteção política para este, e também o caso da filha de Gunnar Hlifarson, que é criada por Thord Bellow.

- Disputas entre chefes eram resolvidas, de certa forma legitimamente, pela força das armas. Isto fica claro quando Herstein é recebido com honras na assembleia ostentando a cabeça de Hen Thorir.

- Os islandeses davam muita importância à hospitalidade e à generosidade. Tratar mesmo um desconhecido com total indiferença era algo mal visto por aquela sociedade - isso provavelmente se dava pelas terríveis condições naturais na Islândia... se o pessoal não tivesse o costume de se ajudar pelo menos oferecendo abrigo e comida, provavelmente não iria demorar muito para não sobrar mais ninguém na ilha! 

- Pelo visto bastava clamar um lote de terra como sendo seu perante algumas testemunhas para que ele passasse a ser legalmente seu. É o que ocorre quando Tunga-Odd reclama como sendo sua a terra da fazenda de Blund-Ketil após a morte deste, e na frente do filho do falecido, ainda por cima! Eu li em algum lugar que isto era uma espécie de ritual para tomar posse da terra "espiritualmente", como se amaldiçoasse outras pessoas que tentassem tomá-la, então para mim não ficou claro se a terra de Blund-Ketil passou a ser legalmente de Tunga-Odd ou não...

- Uma coisa que pode causar confusão: Arngrim é referido, na versão em inglês, com o título de "Priest", que geralmente é traduzido como "padre" (embora o mais correto seja sacerdote). Mas em islandês seu título é "Goði", o que não deixa dúvidas de Arngrim se trata de um sacerdote pagão (e os Goði também exerciam poderes políticos na Islândia medieval, o que confirma que Arngrim era um senhor de relativa importância na época da saga)



6 comentários:

  1. Não conhecia essa história, e agradeço por ter compartilhado. Me lembro de ter visto Arngrim em alguns contos esparsos, e me recordo que na maioria deles, ele era de fato um sacerdote.
    Em relação à história e a densidade da mesma, penso que isso era comum porque refletia a própria vida das pessoas na época. Por conta das condições climáticas um tanto impiedosas, especialmente fora da época de verão, tudo e todos eram muito práticos e "direto ao ponto", como bem disse. Isso se reflete em praticamente todas as sagas que li. Não é hábito que se tire mais do que um breve momento para descrever cenários ou paisagens, e tudo gira em torno de contar a história da forma mais objetiva possível (quase como se houvesse pressa para isso, pois algo ruim poderia acontecer e o impedir de terminar).
    É fascinante como podemos aprender muito sobre uma cultura apenas prestando atenção a suas histórias.

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    1. Você já viu Arngrim em outros contos? Que legal, não sabia disso. Talvez eu já tenha lido outra saga em que ele aparece e não me toquei que era o mesmo personagem (os nomes não têm tanta variedade nas sagas islandesas, pelo que percebi).
      Concordo que tudo tinha que ser bem prático por conta das dificuldades da vida... não era possível perder tempo com futilidades naquele ambiente hostil!
      Só nessa pequena saga de Hen Thorir já aprendemos muita coisa sobre a sociedade islandesa medieval. É impressionante mesmo!

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  2. Gronark, O Senhor do Sofrimento14 de setembro de 2022 às 17:15

    Deveria parar de tentar passar o conhecimento antigo para as novas gerações, bardeco! A história está sendo "corrigida" para agradar alguns poucos e amansar as massas! É só ver como grandes historiadores de renomadas universidades estão "descobrindo" que as mulheres eram as verdadeiras caçadoras e líderes de tribos primitivas, que Wakanda era real e que foi destruída pelos romanos, de que os astecas destruíram o império romano junto de monges shaolin chineses de etnias diversas. Sem falar que agora foi descoberto que Joana d'Arc foi a primeira santa trans, que lutou contra a identidade de gênero heteronormativa e por isso foi queimada pela maligna igreja que sempre defendeu o patriarcado opressor. Colocarei os links das obras de meus servos sobre a santa. Agora ela foi finalmente "corrigida e atualizada para tempos modernos" HAHAHAHAHAHAHA

    https://www.terra.com.br/noticias/joana-darc-nao-binaria-em-peca-causa-debate-sobre-sexo-e-identidade-de-genero-na-inglaterra,06fa0b638f9b78e634109b2714e165b3umjn1960.html

    https://qspirit.net/joan-of-arc-cross-dressing-lgbtq/

    Não podemos esquecer que até mesmo a Brasil Paralelo está sofrendo "cancelamento do bem" por tentar defender a história dessa nação. Sendo que essa organização está apenas tentando resgatar um pouco da cultura, mas isso não será tolerado, e meus servos que são historiadores "credenciados" pelas maiores universidades do país irão cancelar e vilipendiar qualquer um que tentar se opor aos poderes da ruína, HAHAHAHAHAHA

    Tanto a história quanto a fantasia estão sendo reescritas para que "reflita nosso mundo atual". praticamente destruindo o escapismo no imaginário defendido por Tolkien. Não irá demorar para que até mesmo clássicos sejam revistos. Veja Spelljammer por exemplo. Uma caricatura horrenda de um clássico do imaginário. Literalmente, o navio voador afundou no mar arco-íris do progressismo, HAHAHAHAHAHAHA

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    1. Para o inferno com a cultura do cancelamento! Abracemos a boa cultura, a alta cultura, para resgatarmos o Brasil das sombras! Arrependa-se, gronark! Ainda não é tarde para se salvar!

      Se os "doutores" foram todos corrompidos (o que não acredito), então a história será salva pelos leigos, pelos hobbistas, e por aí vai. Sempre há esperança!

      Venha para a luz! Arrependa-se!

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  3. Para o abismo com o seu "cancelamento do bem", Gronark! todos estão vendo o que seus lacaios estão fazendo. E para o abismo também com sua "santa trans". Eu honestamente não consigo entender o estado de putrefação da alma de alguém para conseguir vir com essas ideias. A última que ouvi de seus cultistas foi a "elevação" da Medusa a símbolo do feminismo (como sempre, sem qualquer base, coerência ou respeito pela história).

    Tempos difíceis, com certeza. Agora que Spelljammer afundou no lodo arco-iris do progressismo, esperemos parar ver, por exemplo, os Cavaleiros de Solammia se tornarem liberais e moralmente abertos no novo Dragonlance. Será, como dizem, "o prego no caixão".

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    1. Essa da medusa eu vi, e foi de doer mesmo. Fizeram aquela estátua ridícula e ainda estão adulterando o mito de Perseu... Mas tenho confiança de que tais atrocidades se perderão nas areias do tempo.

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