Nobilíssimos aventureiros, taverneiros e NPCs, hoje o bardo lhes traz um assunto um pouco mais sério.
Escrevo este post inspirado por um vídeo que vi já faz alguns anos (acho que por volta de 2016) em que o cara argumenta justamente isso: para salvar a cultura nacional, devemos parar de tentar salvá-la.
Infelizmente não encontrei o vídeo, senão eu deixaria o link aqui. Ou foi deletado ou já está enterrado nos confins do youtube.
Lembro-me que o autor do vídeo usou os seguintes argumentos, ambos excelentes, em minha humilde opinião:
- O Mickey Mouse não tem nada a ver com o folclore dos EUA, e nem com o folclore dos antepassados britânicos dos americanos, e hoje é um símbolo da cultura norte-americana;
e
- Já cansaram de fazer "jogo do saci", e isso nunca faz muito sucesso, porque geralmente um "jogo do saci" é forçado.
(E especialmente este último argumento é o que eu mais percebo na minha experiência. Acho que todo mundo que já estudou em escola pública no Brasil já passou por algo parecido, conforme veremos a seguir)
Eu vou além: o que Mário, Pokémon e Digimon têm a ver com o folclore japonês? Muito provavelmente nada. Talvez haja um tiquinho de folclore nipônico influenciando o design de algum Digimon ou pokémon, ou talvez alguns dos monstros que o Mario enfrenta sejam inspirados em lendas daquele país, mas não passa muito disso.
O importante é que estas criações acabaram se tornando símbolos da cultura japonesa, assim como o Mickey Mouse e o Pato Donald se tornaram símbolos da norte-americana.
Aqui nós temos, infelizmente, uma mentalidade de vira-lata. Este assunto já foi exaustivamente discutido em diversos livros, sites, fóruns, etc.
Portanto não vou me aprofundar nos aspectos amplos deste assunto.
Vou focar somente no modo como isso afeta a nossa criatividade: Essa mentalidade autodepreciativa acaba atuando de uma maneira meio paradoxal nas questões relativas à criatividade:
1) Há alguns que se sentem mal, ainda que a um nível subconsciente, por nossa cultura não ser a "mais valorizada", ou não ter um local de destaque "no mundo".
2) Isso cria um certo ressentimento, principalmente em pessoas de mentalidade mais fraca, contra culturas que são mais "bem sucedidas" (geralmente o critério de "mais bem sucedido" é quase que exclusivamente o desempenho comercial, por mais incompleto e imbecil que isso seja, afinal é óbvio que sucesso comercial não é sinônimo de qualidade.... a prova disso são os músicos que fazem sucesso hoje em dia, as nossas celebridades midiáticas, etc.).
3) O ressentimento faz com que tentemos nos apegar aos símbolos de nossa cultura que mais conhecemos, aqueles símbolos que nos ensinaram que representam a nossa cultura (no Brasil o símbolo mais famoso, no caso do folclore, deve ser o saci-pererê). É como se nos preocupássemos demais com os símbolos que em nossas mentes representam a nossa cultura.
4) Esse apego acaba servindo como barreira à criatividade, pois ao invés de tentar criar algo totalmente novo, ficamos presos ao nosso "apego", o que serve como âncora e que dificulta que saiamos do lugar. Um exemplo hipotético, para ilustrar o que quero dizer: digamos que alguém tentasse criar um desenho animado no Brasil. Provavelmente essa pessoa receberia conselhos e consultorias do tipo "você deveria criar um desenho animado do saci-pererê para valorizar a cultura nacional", e isto provavelmente iria tolher a criatividade do animador. (Não que necessariamente alguém fosse chegar e falar isto diretamente para o animador hipotético, nem que alguém fosse literalmente obrigá-lo a fazer um desenho baseado no saci... mas ele provavelmente se sentiria "na obrigação" de fazer isso, por influência do que aprendeu na escola... Quem nunca teve aquela professora de artes ou de língua portuguesa que vivia passando inúmeros trabalhinhos baseados no folclore nacional?).
Será que os programadores da Nintendo que criaram o Mário ficaram pensando que "puxa, eu tenho que fazer um jogo em que o monstro é um kappa e o herói é um samurai, senão não estarei valorizando minha cultura..."?? Claro que não! Eles tiveram muita liberdade criativa e fizeram um jogo de um encanador italiano que entra em canos, come cogumelos e luta contra um exército de tartarugas lideradas por um dragão-dinossauro para salvar uma princesa. Há elementos de várias mitologias ao mesmo tempo, e ainda há coisas novas. Há até alguns elementos de folclore japonês também (só me lembro agora da roupa de tanuki no Super Mario 3), mas esse não é o foco dos jogos do Mário. O foco é ser divertido e jogável.
Pois é a própria mentalidade de vira-lata que cria esta falsa necessidade que "força" alguns produtores de jogos a criarem jogos baseados no nosso folclore só porque sim. Eles não são totalmente livres para criar coisas novas. Eles geralmente programam um "jogo do saci" não para ser um jogo legal e divertido, mas para "valorizar a lenda do saci e o folclore brasileiro". O resultado disso costuma ser enfadonho e forçado.
Esta questão da cultura nacional tem um outro lado também, que enxergo como culpa do nosso sistema de educação: a nossa história tende a ser ensinada de uma maneira muito chata, como se os professores e autores dos livros didáticos dissessem nas entrelinhas que "ah, o Brasil é um porre mesmo, nunca fizemos nada de bom e nem nunca vamos fazer, a nossa história não tem graça". Esse jeito de pensar na nossa história acaba respingando no ensino de literatura e artes nas escolas: o nosso folclore também é ensinado de uma maneira que faz ele ser chato. Geralmente as crianças aprendem sobre o nosso folclore como se estivessem vendo roupas velhas sendo exibidas em um museu de quinta categoria (eu literalmente tinha passeios na minha escola para um museu assim...), e não lendo livros de literatura fantástica, que é o que atiçaria a imaginação e criaria realmente gosto e despertaria a criatividade.
Acho que tudo isso precisa mudar. Não tenho a resposta certa, nem a "fórmula mágica infalível".
Só sei que o jeito como está, está errado.
(PS: eu não tenho nada contra o saci-pererê. Apenas usei-o como metonímia porque o autor do vídeo que inspirou este artigo também o usou assim, e porque acho que ele é, como eu escrevi, a criatura mais conhecida das lendas nacionais e a mais representativa do nosso folclore)