segunda-feira, 11 de outubro de 2021

A exaltação dos vilões e o estado de nossa sociedade atual

 

Há alguns anos eu tinha um colega de trabalho (porque afinal mesmo um bardo precisa ter um emprego "comum" nos dias de hoje, caros aventureiros...) com quem de vez em quando discutia literatura, filosofia, essas coisas. Era muito bom ter alguém no trabalho para falar deste tipo de assunto, ao invés de fazer fofoca ou falar sobre as coisas relativas ao trabalho.

Eu me lembro bem de uma crítica, um tanto en passant, que ele havia feito a respeito de Victor Hugo e sua famosa obra O Corcunda de Notre Dame. Ele disse algo na época como "não era para o monstro ser um personagem bonzinho. Monstro não é bonzinho!". Não sei se foi bem o que ele quis dizer (também não lembro o contexto da conversa), mas creio que hoje eu entendo um pouco melhor o significado desta crítica (ou então viajei muito).

Antigamente, bem antigamente mesmo, no tempo que o avô de meu bisavô chamava de "antigamente", existiam os chamados Romances de Cavalaria. Neste tipo de literatura, tínhamos a figura do Cavaleiro Andante, que era o herói Ideal, cheio de virtudes (honra, justiça, compaixão, caridade, etc.), que dedicava a vida à prática do Bem (proteger os fracos contra os fortes, salvar donzelas em perigo, tudo isso pondo a vida em risco e vivendo de maneira praticamente monástica, verdadeiros heróis andarilhos). 

Claro que esta é provavelmente uma visão romântica dos cavaleiros medievais. Provavelmente bem poucos viveram desta forma (se é que algum viveu assim), mas o que importa aqui é que as Virtudes eram valorizadas na figura de um herói ideal. Quem lesse estas histórias teria estes heróis como exemplo de vida e provavelmente se lembraria deles quando passasse por determinadas situações em que fosse necessário possuir determinada Virtude para superá-las da melhor forma possível. Seguiria os bons exemplos virtuosos de seus heróis. 

E por um bom tempo foi assim, mesmo depois da época dos romances de cavalaria, mesmo durante épocas conturbadas, os heróis ainda eram muitas vezes retratados na literatura como figuras exemplares. As pessoas que liam a boa literatura tinham acesso a tais bons exemplos. Ou, pelo menos, havia bons exemplos, havia uma exaltação das virtudes. Mesmo na Literatura Gótica era possível ver claramente onde estava a moral.

Mas chegou um tempo, digamos, uns 20 ou 30 anos atrás (20 anos atrás era 2001, acreditem se quiserem...) em que ocorreram fortes mudanças de paradigma (ou tais mudanças já existiam e passaram a ser percebidas mais facilmente, eu realmente não sei). As observações abaixo são mais aplicadas ao cinema e aos quadrinhos (as formas modernas de "literatura"): 

1) A vasta maioria dos heróis retratados na literatura deixaram de ser exemplos virtuosos e passaram a ser mais "humanos", e a terem falhas de caráter - humanizar o herói tem um lado bom, mas o problema é quando ele apresenta falhas graves de caráter. Tem vezes em que o personagem que é apresentado como o herói da história não é nem um herói de verdade. Pensem, por exemplo, nos protagonistas do filme Truque de Mestre - no fundo eles são assaltantes de banco e gostam de enganar pessoas usando sua "mágica" só por diversão - o tempo inteiro do filme eles parecem fazer seus truques só "de sacanagem". Mas são retratados como heróis porque dividem o dinheiro roubado com as pessoas da plateia. 

Outro filme que exalta a figura do ladrão é Golpe Duplo, cujo protagonista é um batedor de carteiras sofisticado, cheio de truques para roubar dinheiro, clonar cartões, etc. A mensagem que o filme passa é que ele merece o dinheiro porque foi inteligente o bastante para roubá-lo sem ser pego.

2) A figura do Anti-Herói ganhou muito mais destaque. Em muitos casos em que isso acontece, o herói é retratado como um cara "certinho", "bobão", "chato" e "otário" porque obedece as regras, enquanto que o anti-herói é mostrado como um cara "misterioso", "legal", que "faz o que quer" e usa as regras a seu favor, quebrando-as sempre que necessário - notem que o Batman e o Wolverine são mais populares do que o Superman e o Ciclope, por exemplo. 

3) Os vilões deixaram de ser retratados como pessoas desprezíveis e fundamentalmente ruins. Hoje em dia os vilões foram até "embelezados" e muitas vezes têm uma imagem mais visualmente agradável do que a dos heróis. Por exemplo, historicamente as bruxas sempre foram retratadas como mulheres horrendas, cuja maldade deformou até mesmo seus corpos. Hoje em dia as bruxas são mostradas como mulheres belas e atraentes e que, mesmo quando fazem pactos com demônios, de alguma forma são "boazinhas" (há um imenso esforço sendo feito, por algum motivo misterioso, para "limpar a barra" das bruxas). 

Notem a tendência que se iniciou de fazer filmes contando a origem de vilões icônicos (Coringa, Cruella, Malévola, etc.) - estes filmes têm mostrado que os vilões não são maus de verdade, são apenas "seres incompreendidos" e/ou que tiveram uma história trágica que """""""justifica"""""""" suas maldades. Não estou dizendo que não seja interessante que vilões encontrem sua Redenção nas histórias, mas nem de longe acho correto justificar seus atos vilanescos.


Um exemplo bem infantil: pensem no He-Man dos anos 80. Era um desenho bobo, com roteiro simples, mas tinha seu valor. He-Man era um exemplo moderno de herói virtuoso e sempre fazia a coisa certa, nunca se atrapalhava. Se fosse necessário, ele salvaria o Esqueleto, caso o vilão estivesse em apuros, pois He-Man não almejava a aniquilação de seus inimigos, ele queria somente proteger o reino de Eternia. 

Agora comparem com heróis de desenho hoje em dia. Os heróis tendem a ser trapalhões, ou "bobões", enquanto que os vilões tendem a ser personagens mais profundos e complexos.

Os próprios traços dos quadrinhos e desenhos animados hoje em dia evidenciam a decadência dos tempos atuais. Antes era normal eles serem realistas ou ao menos anatomicamente corretos. Hoje em dia isso é a exceção, e o normal é desenharem personagens bizarros, desproporcionais, etc. ou simplesmente mal desenhados, porque agora a estética predominante neste meio hoje em dia é a não-estética, a feiura. 

Uma maneira simples de resumir o que escrevi nesta tarde que já escurece: enquanto antes havia a celebração à beleza e às Virtudes, hoje em dia a sociedade no geral enaltece e celebra a feiura e a decadência. Hoje em dia a sociedade parece sentir-se bem em chafurdar na lama e na sujeira, e parece não almejar sair desta triste situação.

Provavelmente na opinião de meu ex-colega de trabalho esta semente ruim já estava plantada pelo menos desde os tempos de Victor Hugo, na figura do Corcunda de Notre Dame. Não sei se concordo exatamente com isso, mas compreendo o que ele quis dizer (Espero um dia ler o livro de Victor Hugo, e tirar minhas próprias conclusões)

A dura verdade é a seguinte: dentro dos corações desta gente há um buraco do tamanho e da forma de Deus, e elas precisam da figura dos vilões para se sentirem bem em relação a si mesmas - afinal, mesmo uma pessoa desprezível e vazia parece ser boa quando comparada com um vilão como o Coringa.

5 comentários:

  1. Saudações, Bardo da Névoa!

    A problemática em questão, característica do "desenvolvimento humano e social", me parece ser apenas um dentre vários outros indícios de algo muito mais extenso.
    De certa forma, também não chega a ser nenhuma novidade, considerando que trata-se de uma particularidade que remonta à uma época bem anterior à Victor Hugo e o seu melancólico Corcunda. Pelo menos, pontualmente falando.
    Afinal, dizem que, há mais de dois mil anos, um indivíduo bondoso, que dedicava-se a ajudar os pobres, doentes e desamparados foi preterido pela multidão, que optou por um criminoso já condenado à morte pelo Império Romano por suas várias condutas desprezíveis. O bandidaço da época foi então solto e ovacionado pela turba enquanto o inocente, acabou sendo brutalmente flagelado e exibido completamente ensanguentado para que a multidão se apiedasse do coitado.
    Porém, nada disso adiantou, e já conhecemos o final da história, posto que o inocente foi crucificado no lugar do meliante.

    Patifes e canalhas, com suas múltiplas e variadas modalidades de golpes baixos, sempre foram uma constante na história humana. Evidentemente, bastante admirados em seu meio pelos seus congêneres, tanto quanto odiados e combatidos fora dali por quem sempre se dedicou a combater-lhes as ações. Logo, a problemática é antiga.
    Mas, o que realmente surpreeende atualmente é a desmesurada glamourização de tudo que assume o aspecto do mau-caráter, da grosseria e da decadência - em contraposição ao refinamento, ao bom-gosto e àquilo que possa elevar o espírito a um estado de equilíbrio e de harmonia com tais valores.
    A regra que vigora é a da satisfação - e tolerância - com o degradante.

    Jimi Hendrix certa vez disse que "fazia a música dos tempos repugnantes". Afirmação bem sintomática da realidade "moderna".
    Vide Hollywood, aquela fábrica da inversão de valores; seguida logo de perto pelas emissoras de tv (e de muitas rádios também) com suas programações degradantes. As badaladas Redes Sociais, por seu turno, elevaram o nível da imbecilidade humana a um patamar nunca antes alcançado, com seu desfile de mediocridades associado ao de vulgaridades parecendo interminável.

    Enfim, este é o cenário.
    Podemos desprezá-lo e rejeitá-lo (empreitada duríssima para muitos), voltando-nos assim para os valores autênticos da boa vida - representados estes pelas boas leituras, pelos bons filmes, as boas músicas e, porque não dizer, pelos bons sites ou os bons jogos.
    Enfim, as boas "companhias" que restaram nesta época em que os próprios seres humanos, em grande parte, se converteram na pior das mazelas que já assolaram a humanidade.
    E como humanidade, entenda-se aquilo que apenas alguns poucos ainda carregam dentro de si.

    Tony

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Grato por mais um comentário, Tony.

      Como você bem disse, a patifaria sempre existiu, e muitos inocentes foram preteridos na história da humanidade. O Cristo é o maior exemplo disso. Outro bom exemplo seria Sócrates (o qual, aliás, semeou o campo e ajudou a preparar a humanidade para a vinda do Cristo). Ambos foram mortos por dizerem a Verdade.

      Eu busco rejeitar o máximo que posso o mundo moderno. Não é nada fácil mesmo. Mas temos que tentar.

      Excluir
    2. Em tempo, complementando o que você disse: há coisas que são intrinsecamente bonitas, e há coisas que são intrinsecamente feias. Um dos grandes problemas de hoje em dia é a questão do relativismo, em que tentam transformar coisas feias em bonitas alegando que "depende do ponto de vista", o que pode até ser verdade para algumas coisas, mas nunca o é para o que for intrinsecamente feio.

      Excluir
    3. Concordo plenamente, Bardo, quando tu apontas que há coisas intrinsicamente belas assim como há coisas intrinsicamente feias.

      O relativismo tão apregoado atualmente e que foi obstinadamente estendido para as mais diversas questões, sem nenhum limite, é algo que corresponde, na verdade, a mais outro embuste utilizado para apenas se tentar legitimar aquilo que deveria estar sendo combatido - posto que intrinsicamente nocivo, intrinsicamente degradante, intrinsicamente feio.

      Também participo dessa espécie de "saudosismo por uma época que já não existe mais".
      Não pelo fato de que os tempos agora serem outros, e sim porque com a renovação ocasionado pelo transcurso do tempo, muitos valores importantes para o engrandecimento do espírito acabaram se perdendo, ou foram esquecidos e trocados pelas "novidades".
      O problema é que as "novidades", quase sempre, se referem à implantação de outros paradigmas - frequentemente contrários aos valores daquilo que, em termos gerais, se constituiam exatamente no que é intrinsicamente gratificante, intrinsicamente enriquecedor, intrinsicamente belo.

      Daí a situação caótica em que a civilização humana se deixou conduzir, fatalmente seduzida a partir da ideia de uma vida mais amena e confortável, que o progresso aparentava proporcionar. As pessoas baixaram a guarda e se abriram pra todo tipo de possibilidades que o progresso parecia oferecer. E nesse processo, foi fácil cair da comodidade e da facilitação que o progresso proporcionou em muitos aspectos da vida cotidiana para um simples apego e a total subordinação a todos os caprichos - algo que encaminhou-se para um constante estado de insatisfação permanente, no qual as pessoas querem sempre mais e mais novidades.
      Um quadro de psicopatia social crônico e epidêmico.

      E muito bem lembrada a sua menção à Sócrates, homem virtuoso que, já naquela época, se deparava com a elite interessada na manutenção desse estado de estupidez e de mediocridade. Por isso, foi condenado à morte, assim como Giordano Bruno.
      Afinal, indivíduos que denunciam o rumo de degradação que as coisas tomaram sempre representam uma séria ameaça.

      E observando os rumos tomados pela Civilização Ocidental, creio que ela já se encontra morta, ou nos seus estertores finais.
      A chama que um dia iluminou essa Civilização, no entanto, continuará acesa entre aqueles que resistem a esse lastimável processo de auto-degradação induzida e incentivada.

      Ao longo da História humana, sempre foram mesmo muito poucos aqueles que sempre resistiram a tendência geral de se chafurdar na lama. Todas as conquistas civilizatórias - e a sua preservação - parece que recaíram somente sobre os ombros de uns poucos que optaram por se esforçar para não serem tragados pelo que constitui o "estado natural": continuar seguindo a manada para onde esta for, ainda que seja em direção ao precipício.

      Tony

      Excluir
  2. P.S.: para uns poucos, resistir a um estado de coisas quando essas coisas já se degradaram completamente, não é só uma questão de ideal (normalmente estéril e vazio), mas, sim, uma das razões de ser da própria existência - sem o qual esta perde todo o seu significado e valor.

    Tony

    ResponderExcluir