sexta-feira, 19 de junho de 2020

Literatura Gótica - Frankenstein, ou O Prometeu moderno (escrito por Mary Shelley)


Este livro foi escrito por Mary Shelley e publicado originalmente em 1818 (há pouco tempo fez 200 anos!), tendo sido o resultado de uma pequena brincadeira entre escritores da época que eram amigos entre si (o depravado Lorde Byron era um deles), que resolveram fazer um "concurso de histórias de terror". Infelizmente, todos os demais contos deste pequeno concurso entre amigos nunca foram publicados e se perderam.

Como 'Frankenstein' deixou críticos indignados quando foi lançado ...


Quem ainda pretende ler este livro, que pare agora a leitura desta resenha.

A história começa de maneira um tanto parada, narrada através de cartas enviadas pelo capitão de um navio (Robert Walton), navegando rumo ao Ártico numa viagem de descobrimentos,  destinadas à sua irmã Margareth, que reside em Londres. Após vislumbrar em uma grande planície uma figura estranha viajando em um trenó puxado por vários cães,  o navio resgata um homem que estava à deriva em um bloco de gelo que se desprendeu. Descobrimos então que o homem resgatado é ninguém menos que Victor Frankenstein, o personagem-título, em um estado bastante debilitado pelas condições hostis da região e pela extrema fadiga. O capitão do navio começa uma longa conversa com Frankenstein, o qual relata sua história de vida, tentando prevenir o ambicioso capitão dos riscos que sua ambição por descobrimentos podem trazer.


Race to sail Northwest Passage heats up - CNN.com

A partir daí o narrador do livro passa a ser o próprio Frankenstein, e a história começa a ficar mais interessante.

O jovem Victor teve uma infância bastante feliz em Genebra, na Suíça, onde foi criado com muito amor por seus pais. Desde cedo apresentou bastante interesse em saber os segredos da natureza, e dedicou-se com afinco a ler obras científicas. Como considerou decepcionantes os livros de cientistas "convencionais", os quais ele considerou terem objetivos demasiadamente mundanos, Victor estudou com bastante interesse as obras de alquimistas famosos, como Paracelso e Cornélio Agrippa, pois considerou que a busca pela vida eterna, a pedra filosofal, entre outros objetivos alquímicos, eram ambições nobres e verdadeiramente dignas de serem buscadas.
Indo estudar na Universidade de Ingolstadt, Victor Frankenstein se dedicou às ciências naturais, em especial Química e Anatomia. Mesmo tendo percebido que os ensinamentos de seus mestres alquimistas estavam àquela época já datados, ele continuou a levar adiante seus ideais, e dedicou-se de corpo e alma à pesquisa pela causa da vida - ou seja, ele buscava o conhecimento de como criar vida. Victor suspeita que poderá encontrar uma pista do que procura investigando a morte e os processos biológicos da decomposição de um corpo humano, e para isso faz várias pesquisas de campo em cemitérios e criptas. Como resultado de uma dessas pesquisas, Frankenstein tem uma epifania e descobre o princípio causador da vida, mas não entra em detalhes, alegando querer poupar o capitão do navio do infortúnio causado pela curiosidade em replicar os experimentos que deram origem ao monstro, caso ele soubesse do segredo.

De posse do conhecimento recém-descoberto, Victor se dedica a criar um ser humano, e faz questão que sua criação seja colossal, e começa o terrível trabalho de juntar partes de corpos adequadas para seu intento, criando assim um corpo de um gigante de mais de dois metros e quarenta de altura. Quando ele impõe o "princípio causador da vida" no corpo que criou, o experimento funciona e a criatura pisca seus olhos amarelos e flexiona os músculos de seus braços.  É neste momento em que, enojado pelo semblante de sua criatura e aterrorizado por suas feições, Victor Frankenstein foge de seu laboratório, abandonando a criatura à própria sorte. Este foi seu erro fatal, como veremos adiante.

Frankenstein de Mary Shelley - Filme - Cinema10.com.br


Quando foi obrigado a voltar para o local de seus experimentos (um quarto em um edifício afastado no campus da Universidade de Ingolstadt) e não encontrou mais o monstro, Victor se sentiu de certa forma aliviado, e tentou esquecer de tudo da melhor maneira que pôde, embora sempre andasse preocupado, com medo de deparar com o horror que era sua criatura.

Por mais que Frankenstein tivesse se esforçado para evitar as consequências de seu ato e, principalmente, as consequências de ter fugido de sua responsabilidade como criador, eventualmente a tragédia chega em sua vida: seu irmão é misteriosamente assassinado, e quem leva a culpa é uma pessoa querida e bastante próxima de sua família. No fundo, Frankenstein sabe que foi sua criatura a responsável pelo horror, mas tem medo de revelar este segredo, temendo que ninguém acreditaria em sua história (além de correr o risco de ser tratado como louco) e também de certa forma com medo de que a culpa lhe seria imputada, tornando-o um pária na sociedade, muito embora por dentro ele achasse que este lhe seria um destino mais que merecido. O medo de assumir esta responsabilidade só faz piorar as tragédias na vida de Victor, e ele sofre dia e noite com a culpa e sem ter o alívio de confessá-la, ou seja, ele fecha completamente a única chance que poderia ter de arrependimento e redenção.

The DeLacey Family | Mary Shelley Wiki | Fandom


Eventualmente a criatura encontra seu criador, e nos é revelada sua história. Ficamos sabendo que ele nasceu ignorante como qualquer bebê recém-nascido, e que aos poucos foi ganhando consciência do mundo ao seu redor. Devido a más experiências sofridas nos poucos contatos humanos que teve (nos quais as pessoas reagiram com medo ou com hostilidade perante a aparência assustadora e mórbida da criatura),  ele aprende que deve evitar ser visto por seres humanos, pois sua vida correria perigo. Mesmo assim, a criatura aprende várias coisas através da pura observação dos hábitos humanos, espionando uma humilde família de refugiados franceses (aprende a falar, aprende algumas ocupações humanas, o uso de algumas ferramentas, e a estrutura de uma família) e aprende outras lendo livros que o destino o fez encontrar (Os Sofrimentos do Jovem Werter, O Paraíso Perdido, e um volume de Vidas, de Plutarco) - nestes livros ele aprende sobre as estruturas dos Estados humanos, um pouco de teologia, cosmovisão cristã, e problemas de origem ética e moral, como o suicídio, a traição, as angústias da vida, etc. A coisa que a criatura mais queria era ser aceita, viver em sociedade com os seres humanos, e quando ele finalmente cria coragem para dar um passo ousado em direção ao seu objetivo (tentando abordar o patriarca da família francesa, o qual, por ser cego, não o julgaria pela aparência, quase obtém sucesso,  pois com apenas sua voz e seus argumentos consegue manter uma conversa civilizada com o velho senhor francês), falha miseravelmente (os filhos do patriarca voltam para a cabana mais cedo do que o esperado, e expulsam a criatura com violência, devido à sua aparência assustadora). A partir deste ponto, a criatura feia, porém bondosa, que apenas desejava ser aceito e conviver com os humanos, torna-se um monstro cheio de amargura e desejos de vingança contra toda a raça humana. Em vários momentos ele se compara ao personagem do diabo no Paraíso Perdido, de Milton. Em sua opinião, seu sofrimento era ainda maior que o do demônio: este havia sido expulso do Paraíso e lançado ao inferno por sua rebelião contra Deus, mas ao menos tinha ao seu lado os anjos caídos, seus companheiros de batalha, para apoiá-lo e acompanhá-lo no sofrimento, enquanto que ele, o monstro de Frankenstein, estava totalmente sozinho no mundo, abandonado à própria sorte, rejeitado e odiado por todos. Somente a vingança lhe restava. Vingança contra a humanidade e principalmente contra seu criador, que o amaldiçoou com uma vida condenada à solidão.

Why 'The Bride of Frankenstein' is the Best of the Universal ...

Ao encontrar seu criador enquanto este caminhava em um local ermo ao sabor de suas angústias e arrependimentos, o monstro conta sua história de vida e lhe propõe um acordo sinistro: em troca de nunca mais cometer crime algum contra qualquer ser humano e nunca mais provocar outra tragédia na vida de Victor Frankenstein, que este criasse um ser semelhante a ele, porém do sexo feminino, para que fosse sua companheira de solidão e partilhasse de suas dores em uma vida totalmente exilada de qualquer contato humano, afastada da sociedade (ou seja, "Adão" estava pedindo que seu criador lhe desse uma "Eva" para juntos viverem em seu "paraíso".). Após muito relutar, Victor acaba aceitando a proposta, e o monstro fala que iria vigiá-lo de longe, acompanhando seu progresso, e só apareceria novamente para buscar sua noiva, quando esta estivesse finalizada.

Rapid Transmission: Mary Shelley's Frankenstein | Human and Social ...


Passam-se meses em que Victor vive uma grande angústia, revivendo mentalmente os horríveis experimentos que deram origem a seu monstro, e chegando à conclusão de que criar uma fêmea seria um processo ainda mais complexo. Decide então viajar para a Inglaterra, para falar pessoalmente com um "grande filósofo" que recentemente havia feito grandes descobertas no campo da história natural (o livro não diz quem é, e nem que descobertas foram estas). Por fim, decide que dará continuidade a sua tarefa profana num vilarejo litorâneo e afastado, na Escócia. Porém, após muito ponderar a respeito das possíveis consequências de seu acordo com o monstro (será que a nova criatura não seria ainda mais maligna que a original? Será que aceitaria ser a companheira do monstro? E se ela não aceitasse, será que o monstro manteria sua promessa de não mais fazer o mal contra seres humanos? Havia muitos questionamentos sérios ali), chega à conclusão que não daria continuidade ao trabalho, e aguentaria quaisquer consequências de quebrar a promessa feita ao monstro. Quando este aparece, Frankenstein destrói o que já havia feito do corpo da nova criatura, deixando o monstro furioso, o qual parte, prometendo se vingar. A partir daí, a vida de Victor só piora, e várias tragédias ocorrem, com o monstro maliciosamente ceifando a vida de pessoas queridas do cientista.

Por fim, arruinado e mentalmente devastado, Victor Frankenstein gasta seus últimos recursos numa caçada ao monstro, para vingar-se dele por todo o mal cometido (e assim buscar sua redenção, aniquilando este grande inimigo da humanidade que ele próprio trouxe à vida). Sua busca é sempre frustrada, pois a superioridade física do monstro o coloca sempre vários passos á frente de seu criador, e este acaba perseguindo-o até o Ártico, que é onde o Capitão Robert Walton o encontra, moribundo, à deriva num bloco de gelo.

Victor Frankenstein morre de exaustão, tomado pela febre e totalmente consumido por sua busca, mas parte de certa forma feliz, achando que de alguma maneira cumpriu seu papel ao perseguir o monstro e tendo a certeza de que estava partindo para rever seus entes queridos que morreram pelas mãos de sua criatura (e talvez achando também que o sofrimento da caçada tenha redimido, ao menos em parte, sua culpa). O Capitão Walton, ao voltar para o quarto onde deixou Frankenstein, encontra o monstro debruçado sobre o corpo de seu criador, e os dois travam o último diálogo do livro, no qual fica claro que a morte de Victor não satisfez a sede de vingança do monstro contra a humanidade. Pelo contrário, com a morte de seu criador, o monstro viu que só lhe sobrou o vazio de uma existência amaldiçoada e angustiante, ao contrário do que ele originalmente acreditava (ele realmente achava que arruinar lentamente a vida de seu criador e por fim matá-lo lhe traria alguma paz de espírito, alguma forma de conforto na "justa compensação" pela não-vida que seu criador lhe deu e pelo abandono), e assim o monstro parte, deixando claro que daria cabo de sua própria existência, e de maneira que seu corpo nunca seria encontrado, para que ninguém mais no mundo tentasse recriar a experiência que lhe deu vida.


Quem nunca leu o livro mas já viu qualquer filme baseado nesta história sentirá falta de vários detalhes que simplesmente não existem:  aquela imagem clássica do dr. Frankenstein em um castelo com para-raios nas torres, que dá vida a um monstro usando a energia elétrica dos relâmpagos, com um assistente corcunda chamado Igor, gritando "Está vivo! Está vivo!" foi inventada para os filmes. Victor trabalha sozinho na história original, e em nenhum momento é dito qual é o segredo que ele descobriu para dar vida a seu monstro (o que pode ter servido de inspiração para os filmes, e que realmente pode ser uma pista que Shelley deixou no livro, é uma cena em que Victor narra que uma das coisas que despertou seu interesse pela ciência foi ter testemunhado, quando criança, um raio fulminar uma árvore durante uma tempestade, e no dia seguinte ter escutado o resumo da explicação física daquele fenômeno da boca de algum homem culto das redondezas).
A multidão raivosa com forcados e tochas que quer matar o cientista por causa de suas experiências profanas também não faz parte da história. Poucas pessoas além de Victor viram o monstro, e ninguém nunca associa o cientista à criatura.
O castelo também é uma invenção do cinema. Victor era, de certa forma, de uma família rica, mas apenas rica o bastante para ter uma vida confortável (seu pai era uma espécie de funcionário público local com certo grau de autoridade, o que devia lhe render um bom pagamento), mas não o suficiente para morar em um castelo.


"Frankenstein" é uma história bastante triste, mostra o quão terríveis podem ser as consequências de um homem que tenta brincar de "deus" e principalmente, as consequências da fuga da responsabilidade. Mostra como a angústia causada pelo sentimento de uma culpa "inconfessável" pode destruir a vida de uma pessoa e drenar suas energias. Deixa também alguns questionamentos morais bastante interessantes a respeito dos limites da ciência e seu trato com a vida humana. A meu ver, uma conclusão que podemos chegar com esta leitura é que a ciência deveria ser sempre acompanhada da moral, pois sem os freios da moral, a ciência literalmente cria monstros.

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