sábado, 18 de janeiro de 2025

A popularização de um hobby não necessariamente é benéfica para o hobby

Ao escrever este texto, ele começou como um simples comentário a respeito da faca de dois gumes que foi a popularização dos RPG, com ênfase nas desvantagens (pois afinal este também é um blog de crítica literária). 

Porém, ao longo da escrita, acabou evoluindo para uma pequena reflexão antropológica a respeito de minhas impressões do comportamento da sociedade atual e do rumo que, na minha opinião, estamos tomando. 

Enfim, meus caros 10 leitores, é apenas um breve desabafo sem a pretensão de estar "absolutamente certo a respeito de tudo".


Um breve resumo do que aconteceu com os RPG e com as demais "culturas nerds" nos últimos 15 ou 20 anos
 

A popularização dos jogos de RPG obviamente foi boa para o Gary Gygax e seus sócios, e foi boa também para quem trabalha com RPG (antes deveriam ser bem poucas pessoas trabalhando, e em uma escala artesanal - e hoje em dia RPG é uma indústria multimilionária, sendo que a WoTC deve ficar com uns 90% dos lucros). 

Ou seja, pelo menos foi bom em termos de gerar empregos e dinheiro. No mundo atual isso é importante, feliz ou infelizmente.

E, claro que se não tivesse se popularizado da forma como se popularizou, talvez eu nunca tivesse conhecido os RPG. Há males que vem para o bem, afinal. 

Mas talvez não tivesse sido assim. Talvez o RPG tivesse chegado ao Brasil discretamente através de pequenas livrarias de nicho e eu tomasse conhecimento da mesma maneira. Na realidade, não tem como saber o que teria acontecido se as coisas tivessem sido diferentes!

O que aconteceu com os RPG, especialmente com o D&D, em minha visão, foi o que aconteceu com muitas outras atividades humanas, outrora artesanais: foi "corporativizado" e com isso burocratizado e industrializado, deixando de ser obra de artesãos apaixonados para se tornar um produto padronizado feitos por corporações cinzentas, muitas vezes comandadas por altos-executivos que não se importam com o "produto" que estão vendendo e muitas vezes nem o entendem. 

Aliás, ter virado um "produto" já foi o começo da degradação do RPG. 

No começo era um trabalho feito por artesãos apaixonados, verdadeiros artistas que amavam o que faziam. É notório o "charme artesanal" dos primeiros produtos da TSR (a empresa fundada pelo Gygax, que fez a publicação de D&D). As primeiras capas em preto e branco, os desenhos feitos à mão, aquilo tudo parecia ter recém-saído do porão ou da garagem de alguém (e de fato alguns saíram mesmo!). Algumas ilustrações eram feias, admito, mas o conjunto todo tinha um charme que acho que hoje em dia só persiste nos livros-jogo da série "Fighting Fantasy", e isso porque por algum motivo (provavelmente custos) não resolveram mudar as ilustrações internas dos livros.




As primeiras capas coloridas mantiveram o charme artístico artesanal, e esse espírito foi carregado até a era de AD&D2e, que eu acho que foi o ponto mais "high fantasy" de D&D, e também a fase mais variada, com várias linhas de produtos paralelos - Ravenloft, Dark Sun, Dragon Lance, Greyhawk -. As capas e imagens do interior dos livros melhoraram muito, mas sem perder o "charme artesanal". 

Embora nessa fase a TSR já fosse uma empresa bem maior do que no começo e já com boa popularidade, o RPG ainda era um hobby "de nicho" (ainda é, de certa forma, mas nem tanto - virou parte da "cultura pop") e a editora ainda mantinha o espírito dos artesãos apaixonados  - embora já fossem "produtos", os seus livros ao menos tinham a aura de terem sido produzidos por e para pessoas que gostam de fantasia e RPG.

A partir de D&D 3.0, as coisas foram ficando mais comerciais, e o D&D 5e, bem como seus novos donos, a WoTC, são como se fossem um "fast food" dos RPG - ou seja: fazem produtos padronizados feitos em massa, para consumo da massa -, enquanto  que a antiga TSR era como se fosse a "comida caseira, feita com amor", para ser apreciada por poucos. 

Não nego que o "fast food" também tenha o seu lugar, mas em excesso faz mal! 

Claro que o crescimento do hobby e da empresa trouxe uma maior distribuição e divulgação do mesmo, bem como mais riqueza e empregos, mas ao custo de tornar tudo mais burocrático, padronizado, chato e mais com cara de "produto", fora o medo que toda empresa grande tem que é o de ser criticada e ter sua imagem manchada (e parece que quanto maior a empresa, mais fácil isso fica e mais medrosa ela se torna - em alguns casos chegando às raias da covardia). 

Hoje os jogos de D&D são produzidos por e para pessoas que não são tão fãs de RPG assim - e pelo visto muita gente envolvida na produção nem gosta de D&D

Na verdade, hoje eles são produzidos visando quem gosta de ser associado à "marca D&D", ainda que não jogue quase nada, ou nem leia muito a respeito. O RPG hoje em dia é produzido para "posers" e não para jogadores. Tudo com uma "tinta" de fantasia e aventura,  para disfarçar o miolo de "cash-grabber" que mal se esconde por baixo.

Talvez essa seja uma tendência humana e tenhamos no fundo uma verdadeira sanha por burocracia e controle. Mas é isso o que eu noto na sociedade: uma tendência acelerada a querer controlar tudo, inclusive mediante o sacrifício da própria liberdade

O triste é ver que há sim um número não desprezível de pessoas que aceita perder grandes fatias de suas liberdades e de sua privacidade em troca de migalhas e pequenas conveniências tecnológicas. 

Há um número não desprezível de pessoas que aceita, por exemplo, trocar sua privacidade por uma velocidade um pouco maior de download de vídeos, entregando as chaves de suas vidas privadas para empresas como a microsoft, tesla, etc. e até mesmo para o governo.

E, é importante mencionar: não duvido nem um pouco que se Gary Gygax ou qualquer outro dos autores originais dos anos 70 tentasse vender seu produto hoje para a WotC, muito provavelmente não seriam aceitos. Seriam até mesmo hostilizados na mídia e nas redes sociais.

E se Gygax e seus amigos tentassem trabalhar na WotC, provavelmente seus currículos seriam jogados na lata de lixo pelo departamento de RH da empresa  sem nem ao menos serem lidos (uma curiosidade: bizarramente, o RH é chamado hoje em dia, no Brasil, de "departamento de gente" em algumas empresas - e todo mundo que trabalha sabe que quanto mais "amigável" é o palavreado do discurso de uma empresa, mais maligna ela é, principalmente contra seus funcionários!).

Para terminar o texto, aqui está uma coisa boa da popularização dos RPGs, somada, é claro, à popularização da internet: qualquer um pode criar suas próprias aventuras, sistemas, regras, ilustrações, etc e distribuir ou até mesmo vender. Claro que a maioria do "output" vai ser ruim (cansei de ver lixo em lugares como o  kickstarter e sites semelhantes), mas pode ser que surjam verdadeiras pérolas que eventualmente redimam o hobby!



Um comentário:

  1. Reflexões pertinentes.
    Sem dúvida é uma faca de dois gumes. Não tem jeito, depois que algo é lançado vira "produto", e, quanto maior a empresa, mais miseráveis serão os papeis a que ela se presta. O maior absurdo de que tomei conhecimento recentemente foi a Hasbro relançar os escritos originais de Gygax e Arneson e, sem o menor pudor, criticar a visão de mundo desses pioneiros (de um recorte social muito específico, claro, e acima de tudo jovens, mas ainda assim desbravadores), enquanto lucra com mais esse produto.
    Penso se os fóruns e blogs de RPG não contribuem enormemente com essa postura hipócrita. Mas, ao mesmo tempo, essas comunidades propiciam a existência de nichos de criatividade e experimentação, originando movimentos contracorrente como o OSR (pelo menos em seu início) e, nos últimos anos, o FKR.
    (Sobre o RH: departamento de gente é péssimo, mas ainda me soa um pouco melhor que departamento de capital humano!)

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